Desconstruindo verdades

“Dentro de mim, existem dois lobos: O lobo do ódio e o lobo do amor. Ambos disputam o poder sobre mim. E quando me perguntam qual lobo é vencedor, respondo: O que eu alimento” (Provérbio Indígena)

No final de semana assisti ao filme “Holy Motors” que apresenta os contínuos adjetivos e estereótipos atribuídos à interface da realidade e da ficção. No filme um motorista dirige em Paris uma limusine branca e vivencia inúmeros personagens ao longo de um único dia.

O longa retrata um homem frente a ordem no caos, sem prolongar a inércia da vida, mas que entende o aqui e agora como o acerto de contas com o real. Entre um mendigo, um assassino, um pai que aguarda a sua filha adolescente e um senhor à beira da morte que se despede de sua sobrinha, presencia-se um verdadeiro exercício de suas identidades intermitentes a cada parada. Esse é só o seu trabalho.

O mundo, assim, se apresenta sob o exercício difícil da fé e da descrença de Deus e do diabo. Percebendo a vida fora do palco, contempla a cena, a maquiagem e personagens que poderão ser ou não verdadeiros dependendo do estado de aturdimento e vertigem em que se encontra. Todavia,  parece ser fácil alienar-se da plateia e continuar a representar de forma silenciosa.

Não há respostas no filme sobre as máscaras adquiridas, apenas o fato de um homem se desconstruir ao longo do dia. Em algumas paradas, age alegremente descompromissado para uma despedida até na morte. Em outras, procura razões para ser infeliz quando o mundo todo está feliz a seu redor e o amor está sorrindo através de todas as coisas. Em outras, a falta de sensibilidade e a repetição de atos repulsivos chegam a ser o paradoxo da vida que pode se transformar e voltar atrás.

E no fim, age de forma dual, assim como Clarisse Lispector, ele se finda “Sou sempre eu mesma, mas com certeza não serei a mesma pra sempre”. Por quê? Ele não parece se importar para onde segue a vida. Não há em nenhum traço de preocupação em agradar só por aquele instante, com o seu sopro. Afinal, ele não quer ser um sujeito legal, quer ser quem ele é, aceita que o desprezem, mas exige que façam a sua vontade.

Penso que todos somos diferentes, temos segredos, manias, verdades, mentiras, disfarces, enfim, segunda pele. Todavia, alguém pode dizer: Ele tem máscara. E a pergunta deve ser: Quem não tem? Conheço pessoas agradáveis, com inúmeras qualidades, ponderadas, equilibradas, com reservas, que não incomodam o outro, mas desagradáveis porque não há verdade. E outras pessoas, tão desagradáveis, cheias de personalidades, inconvenientes, perniciosas, mas inegavelmente com as suas verdades, mesmo sem respeito às regras da civilidade.

Como se pode passar uma vida procurando a ocasião, representa  Contardo Calligaris, em seus comentários provocadores:”Quando desistimos da nossa singularidade para descansar no comportamento de grupo, aí está à origem do mal”.

Ou algo próximo a uma frase que encontrei na série Revenge: “Existem dois lados de toda história, existem dois lados de toda pessoa. Um lado que revelamos ao mundo e outro que mantemos escondido dentro de nós mesmos. Uma duplicidade governada pelo balanço da luz e da escuridão, dentro de cada um de nós existe a capacidade para o bem e para o mal […]”.

E só, assim, aqueles que estiverem hábeis para manchar a linha divisória, possuirão o poder verdadeiro. E a vida seria então um acordo do meio termo. Anjo ou demônio. Seria uma constante dualidade para criar sentido. Seria a possibilidade de a cada esquina arrancarmos o que não nos serve e encontramos uma vida paralela ou quem sabe a real.

Talvez até destruir as evidências das diferenças dos  elementos em comum, que nos levam a considerar a hipótese da existência da verdade. E a vida poderia ser um oscilar de uma forma regular ao longo da eternidade, seja para o lado esquerdo ou direito, vivenciando a verdade ou  a mentira. Dependendo, assim, do julgamento e das crenças de cada um.

Pode ser que a desconstrução não leve direto as estrelas, mas sempre leva algum caminho. Não conheço um Sansão que não passou a ter cabelos, agora, cuidados por um profissional ou um Davi que não desmiolou algum gigante, levando-o ao divã. Ainda vai doer, mas de maneira bem diferente. Penso que Virgínia Woolf foi felicíssima na frase: ”Estou perdendo as minhas ilusões, talvez, para adquirir outras novas.”

E se mutiladas por pontos de suspensão, raquíticas de elipses, o casulo da mariposa seria o pernicioso, seria a vaquinha do presépio, o saco no trabalho,  a pressão da sociedade, o amor que não foi privilegiado, a mentira que se fez verdade, a maldade silenciosa, a amizade desfeita,  a promessa não cumprida,  a metade da felicidade.

Talvez seja descobrir que nem sempre saberemos quem somos nós, como Umberto Eco em  “O Pêndulo de Foucault”:
“No mundo há os cretinos, os imbecis, os estúpidos e os doidos.
– Falta alguém?
– Sim, nós os dois, por exemplo. Ou pelo menos eu, sem ofensa. Mas em resumo, vendo bem, seja quem for pertence a uma destas categorias. Cada um de nós de vez em quando é cretino, imbecil, estúpido ou doido. Digamos que a pessoa normal é a que mistura de maneira razoável todos estes componentes, todos estes tipos ideais. “
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Luciana Santa Rita