O passado que a vida traz


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“Queria endurecer o coração, eliminar o passado, fazer com ele o que faço quando emendo um período — riscar, engrossar os riscos e transformá-los em borrões, suprimir todas as letras, não deixar vestígio de ideias obliteradas”. (Graciliano Ramos)

Em um final de novembro, num piscar de olhos, lutando contra a dualidade do amanhã, ele chega e faz tudo parar. Tranquilo, precisa de um sentido, move-se sem fantasia, finge-se de verdade e se acomoda na forma humana sob a mesma colina. Chega bem perto, apenas para ser revivido. Talvez venha me ferir antes do final do dia.

É o passado que reconhece o seu lugar. Penso que para ele a chegada é mais uma diversão, visto que não pediu explicações sobre como me senti com a sua trégua. Como um leitor e as minhas palavras, fico entre voltas, aguardando as lágrimas e a solidão como em um final de domingo.

Lembro que tentei lutar contra ele e fiquei por um longo período anunciando o fim de uma dor. Roubei uma chave da sensibilidade ao esconder a minha posição e já tinha percebido as suas luzes se apagarem depois da cena. Pensei ter acendido um novo fogo para brilhar no escuro, mas o quarto ao lado girava com a sua sobrevida.

Não sei nesse momento o que faço para ele não durar a noite inteira e não consigo levantar voo. Cara a cara eu poderia dizer algo, mais ou mesmo como me sinto, mas não teria outra forma, que não parecesse o silêncio, uma dor ou uma justificativa. Logo, caminho para mais uma ilusão persistente.

Sinto que o coração bate e a voz na minha cabeça grita como um tumor que poderia ter sido extirpado pela sua inadequação aos órgãos vitais. Sinto que ele devia ter sido tomado pela quimioterapia porque ele machucou de verdade, mas no escuro da plateia, ele se hospeda. Não sei o que significa, mas sei que é forte essa sensação do estar voltando.

Percebo a hora de abrir os olhos, mas estou presa no mesmo lugar. Digo que tenho que ir, mas ele segura as minhas mãos. Povoa a minha solidão e sinto que estou do mesmo lado em uma história em que ele poderia ter sido um texto encerrado. Ele já roubou a minha estrela e foi uma conversa silenciosa. Todavia a sua luz brilha para sentir o vento e me desconstrói sem nada de trivial. Não é bem vindo, mas traz a saudade de recordações nada abstratas.

Ele nunca me fez me sentir bem, não me fez me sentir segura, mas não se sente deslocado na realidade que já é minha. Não estou cega, sob pressão, sem esperança, mas ele se enterra sob as almofadas com intimidade e alcança o campo mais estreito que é a minha fragilidade, a minha compaixão, a minha rendição.

Fecho os olhos, mesmo sem tempo para dormir, mas ele flui para fora do meu corpo e alcança a minha alma. Eu não quero ficar acordada, mas ele continua lá com o peso de uma tonelada de tijolos. Talvez eu consiga aliviar a dor, mas agora o entendo e estamos tão próximos e distantes. Novamente ele parte o meu coração, mas não há tempo a perder e não há folga ou limite para o seu esquecimento.

Naquela tarde como tantas tardes havia claridade demais na janela. Nada semelhante ao que sonhei para esse final de ano e se pudesse teria mergulhado até o cair das nuvens, sem convites para o jantar.  Todavia, ele se acomoda no meu monólogo e do nada acorda no concreto e não se preocupa com a gravidade.

Difícil encontrar quem não tenha um passado digno de não ser ajustado, como uma calça larga saruel que por si só é um colete a prova de balas contra qualquer cintura.

Às vezes eu penso que o passado nunca foi a condição certa para mim. Às vezes o vejo como a submissão que chegou ao fim.  Às vezes penso nos momentos em que o passado me ferrou e por onde ele andou por toda a minha vida.

Não quero viver dessa maneira, sendo ele alguém apenas a quem eu conheci. Já estive em todos os lugares procurando aniquilar o passado. Mas admito que por ele fiquei sem luz, correndo atrás do sol, mesmo quando senti que não fazia mais  sentido.

O passado estava de frente, sem permitir espaço para um novo começo ou para o luto que já tinha chegado à fase final da aceitação, distanciando-se da prisão sem clemência. Grito e quando a luz do dia está apagando, ele começa a brincar no escuro como se fosse a rosa perdida. Não escuto uma palavra do que ele diz. Ele se atira em mim e eu me levanto. Sou a prova de balas.

Nesse momento, gostaria de ver o passado como uma cidade fantasma, além de mim, mas só  o percebo como algo que não faz sentido, mas não tem como ser aniquilado. Atiro nele, mas ele não cai como uma página virada, pois mesmo com o final do texto, a história continua.

Na madrugada, reflito que a chegada do passado é como um desejo passageiro que não se sustenta e que pode até apresentar um prólogo com um brilho sem fim, mas sua presença é só uma imagem que de tanto sentimos, já não há vida ou já não o vemos como tsunami. Concedo perdão ao passado e ele se distancia da mente.

Recordo que se esquecermos do passado, outros virão. Afinal ele é só um rosto sem expressão nova. Ele é parecido conosco porque ele é transparente ou se acomoda entre cortinas, pois nunca ficará sem vontade de nos atropelar e matar. Mas deve ser um espaço para se meditar, perdoar e mudar, sem ficar condenado a revivê-lo.

Para mim só escrevendo e respeitando a história, posso não me livrar do passado, mas evitar que não haja a escolha de viver o dia. Talvez eu não possa mudá-lo, mas posso ajudar a minha natureza humana a me salvar e lidar com as minhas fraquezas por milhões de anos.

E a vida se segue como uma página virada, mas não arrancada. Aprendendo ou desaprendendo com o passado ele será só uma verdade inabalável sem possibilidade de mudança. E como diz Pablo Neruda:  “..Saudade é amar um passado que ainda não passou. É recusar um presente que nos machuca. É não ver o futuro que nos convida…”
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Luciana Santa Rita