Em defesa da conta que chega em partes

“Não importa o quanto você mude, você ainda tem que pagar o preço pelas coisas que fez. Então eu tenho uma longa estrada. Mas eu sei que vou ver você de novo. Neste lado ou no outro.” (Ben Affleck no filme Atração Perigosa)

Nesse final de semana, assisti com a devida distância do lançamento, ao filme “Atração Perigosa”, escrito e dirigido pelo próprio Affleck, cujo contexto destaca um grupo de criminosos com total ausência de emoção quando tudo começa a descarrilhar durante o roubo de um banco.

No filme, inverte-se a lógica de indiferença à vítima e o líder do grupo se apaixona pela refém durante o assalto ao banco, surgindo, assim, um desejo de mudança. Não é um filme que trata de transgressores natos, mas do despojamento do ser humano perante a remissão natural de seus erros.

Percebo que existe uma crença de que as leis da natureza condicionam que as coisas aconteçam de uma única forma, sem enxergamos o livre-arbítrio na questão do arrependimento ou mesmo a sua espacialidade.
Você, eu não tenho ideia, mas eu nunca conheci ninguém que, em um bar, não tenha se incomodado com a divisão de uma conta coletiva quando se pede uma conta parcial. Percebo que quando o garçom entrega a conta, o foco é desviado, gerando desconforto para quem vai embora e para quem fica. Dificilmente não pairam dúvidas sobre o que restou quando não existe um acordo pré-definido.
Analogicamente, penso que acontece algo semelhante com os erros que comentamos em diferentes fases de nossa vida. Independente do que deixamos da conta parcial, que seria o quanto mudamos, o que ficou, gera, ainda, desconforto para o outro, principalmente, porque se percebe uma realidade que  contraria o livre-arbítrio, pois seria involuntário.
Entendo que a nossa pior escolha é esperar o determinismo, ou seja, que o outro entenda a mudança imediata, como se o arrependimento fosse um pagamento adiantado frente às parcelas pendentes da conta.  Logo, o simples fato da promessa da não repetição, não anula o erro.
Nesse sentido, imagino que não é a mudança do outro que permite que a conta seja eleita a conta final. Ademais, percebo, também, que essa questão não está associada a falta de perdão, mas a possibilidade de certeza que o outro deixou de se repetir.

Dificilmente encontramos alguém que não pensa que poderia ter feito diferente. Vejo exemplo no cotidiano quando assume que a amizade, o amor ou qualquer relação resiste a tudo, que deve aceitar as reprises ou colocar o despertador adiantado para não perder a hora e desligar no meio da madrugada, apenas pelo mito da resistência que se é capaz de acordar na hora.
Não se trata de perceber que a vida é justa ou injusta, mas apenas de se desconstruir e flexibilizar frente à frase de Goethe: “de que devemos pagar caro pelos nossos erros se quisermos ver-nos livres deles, e depois podermos até dizer que temos sorte”. Seria algo semelhante a  aprender se aperfeiçoando ao que passou. Não porque a porta estava aberta. Não porque alguém iria pagar um valor maior da conta no final.
Dentro de sua complexidade, os arrependimentos podem permitir mudanças, mas podem  levar a solidão do não poder fazer mais nada. Pode justificar um desenho de um novo caminho de casa, como um sufista, em que as ondas marcam o caminho, mas pode ser marcado pela impossibilidade de se voltar atrás e pegar as mesmas ondas.
E, assim, o arrependimento pode ser um ato de humanismo, mas pode ser retrocesso ou uma rua sem saída. Entendo que não se trata de bater no peito e falar sem humildade que não faria nada diferente, apenas por delimitação de área, mas de colocar, ao lado, as ilusões e aceitar a realidade dos nossos próprios atos.
Em outra perspectiva, seria seguir em frente, com uma aposta na bolsa de valores, depois do recrudescimento da queda de ações, procurando não se vitimizar ou enganar a si próprio por meio do mecanismo do autoengano de ser perdoado 70.000 mil vezes.

Certo dia li uma crônica do Rubem Alves sobre a transformação do milho duro em pipoca macia como uma mudança pela qual as pessoas devem passar para que venham a ser o que elas devem ser. Como uma analogia à fatalidade necessária, a conta em partes seria a passagem do milho para pipoca pelo poder do fogo, pois sem  ele o milho continuaria a ser milho de pipoca, para sempre.
Confesso que levei parte da vida lembrando ações, palavras e missões que chegaram aparentando que eu tinha razão e só me levaram ao enfretamento de pipocas que já tinham perdido o controle do fogo e queimaram.  Só depois de um tempo, entendi o que cantava Renato Russo: “Sinto arrependimento quando não aprendo com meus erros.”

Hoje depois de várias tentativas de monólogos no escuro da plateia, venho tentando atribuir a culpa dos meus erros e infortúnios a mais ninguém, senão a mim. Às vezes me vejo no papel de vítima, mas demoro o mínimo de tempo sem enxergar o preço que devo pagar pelas coisas que fiz.

Isso também não significa que tenho crédito consignado para o erro. Compreendo que em diferentes fases da minha vida, a autocomiseração não fez sentido. Foi colocada como anfitrião, mas vi as luzes se apagarem logo depois da primeira cena. Compreendo que as pessoas não estavam mais dispostas a relevar quando eu perdia perdão a cada dois dias.  E aí comecei a internalizar a conta em partes.

De um lado, o começar de novo parecia algo deslocado da realidade. No entanto, aceitei um mundo de desconcertos ou com possibilidade de refazer o percurso. Entendi que não estava congelada na era do gelo, mas também não estava condenada a ser uma divindade humana, minuciosamente premeditada a passar a vida tentando corrigir os erros. De outro, impedi a cobrança de uma conta que mesmo paga, o tempo vivido não levou ao esquecimento.
Tento não me basear em remake de velhos ditados como “a gente colhe o que planta” ou “quem semeia urtiga não colhe rosas”. Mas, estou disposta a pagar o que ficou da conta, mesmo sem dá 100% de atenção ao tempo passado. Entendo que não existem algozes para o perdão, pois de uma forma ou outra somos escravos de uma situação se não conseguimos nos libertar da mágoa.
Algumas ruas têm que ter mão e contramão, outras apenas uma direção. Logo, a frase de Carl Jung: “erros são, no final das contas, fundamentos da verdade”, não é só uma questão de ponto de vista, mas uma perspectiva de recalcular a conta e pagar os juros, com a certeza do único determinismo que é de liquidar a conta aos poucos.
About the author

Luciana Santa Rita