Quando as padarias deixaram de vender sonhos para vender Ipad

“Não me interesso em como as pessoas se movem, mas os que as movem”. (Frase célere de Pina Bausch, bailarina e coreografa alemã que revolucionou a dança no século XX)

Pina Baush pensava como Fernando Pessoa em uma espécie de dever de sonhar. A garrafa transparente era lançada ao mar, mas não cabiam sonhos indecifráveis. A dança era como um campo florido guardado por cães pastores que simbolizava as dualidades humanas: de um lado o desejo, o sonho e a esperança. De outro, a realidade.

Nesse final de semana, lembrei-me de Pina, após ler uma reportagem à qual descrevia o julgamento de cinco envolvidos na província de Hunan, no sul da China, em uma intermediação clínica, perante a um adolescente de 17 anos que teria vendido, em abril deste ano, um dos seus rins por R$ 6 mil para comprar um iPad e um iPhone.

 

Destaco que o esticar do braço na questão não envolvia um violino que  tocava  desencontrado da voz da soprano, mas o sentido de um modelo esquizoide do jogo da vida. O consumo tinha levado ao desespero do agora frente à imprevisibilidade da conquista dos movimentos suaves do corpo que desliza, levanta, cai e levanta quando encontra, enfim, a harmonia.

Fui uma criança na década de setenta. Colecionei papel de carta. Usei melissa e calça Levis.Conheci a boneca amiguinha. Joguei Genius da Estrela. Colecionei miniaturas de coca-cola.  E, mesmo sem entender a hiperinflação, tive inúmeros sonhos. Todavia, o maior deles era um simples patins de ferro, que hoje seria chamado de clichê, além de distante do aparelho de walkman da Sony que já fazia sucesso na época.

Gostava de ir ao comércio com a minha mãe, acompanhar o meu pai no trabalho e, depois, passar na padaria no final da tarde. Não existiam multicanais de compras. Esse momento sempre era mágico, pois assegurava a possibilidade de sentir diferentes sabores, provar bolachinhas e assegurar quitutes que poderiam ser apreciados no jantar. O sonho era um deles. Era tudo previsível.

Já na década de oitenta, mesmo não sendo uma adolescente precoce, sonhava com brincos que colavam, imaginava namorar na porta, dançar em uma boate, assistir “Lagoa Azul” e “Dirty Dancing” por incontáveis vezes e não brigar com a minha mãe.  Esperar o final de semana para contemplar o amor platônico. Da lista de sonhos sem fim, o único com jeitão de impossível era morar no Havaí ou tomar uma garrafa de um vinho.

No início da idade adulta, o maior sonho era passar no vestibular em uma universidade pública e ser inteligente como o meu pai. Nunca tive acessos de pessimismo e crises de melancolia pelos sonhos que não passavam apressados por mim. E, com certeza, nunca associei a palavra sonho a momentos súbitos.

Em uma análise simplicista ou minimalista, era raro desviar a atenção do foco. Afinal, presentes eram ganhos, apenas, no aniversário e no natal. O sonho esperava. E  esperava-se a surpresa. Fora o rock on roll, a minissaia e o cigarro, o prenúncio antecipado da crise existencial sem razão, não valia o fio da espada.

Era o mundo do futuro e dos ideais. Era o mundo que ainda ia acontecer. Era o mundo de quem guardava a fé, dos que lutavam na solidão e contra a ausência do apoio da família. Mas o sonho era redundante sonhado. Não existia psicólogo, nem apoio psico-pedagógico na escola. Não se podia voltar atrás ou mudar de ideia durante um segundo, pois não havia telefone celular ou email para se pedir perdão ou falar que o amor era grande. Não havia delivery para o sonho, ele era entregue no tempo certo.

Era tempo de U2 com sua melodia grave de ‘Sunday Blood Sunday’, das leituras ideológicas de Marx frente ao tempo das atuais confusões de Britney Spears. Hoje o sonho consumado é descrito pelo dia quando termina com as contas pagas, com pensamentos em palavras sem significado léxico.  Diria que o sonho é a fantasia do excesso. Perde-se a inspiração do desejo.

 

Não sei ao certo o momento em que a lista de sonhos da contemporaneidade deixou de se orientar pelas estrelas para se orientar por GPS. Ou mesmo quando se associou a sensação da angústia ou quando eles tornaram estranhos aos pedidos que poderiam ser enviados ao Papai Noel. Diria quando se tornaram sonhos incodificáveis, passando só o carnaval na realidade.

Penso no sonho como algo que não machuca, aliás, que pode exigir até esforço, gratidão, sorte ou mesmo destino. Mas paradoxalmente, estamos vivendo a era dos sonhos que deixam as aspas ampararem nossos desejos. Sonhos em cores imperfeitas, adeptos da fome desassombrada,  demasiados etéreos e impossíveis de se silenciarem na espera.

Talvez haja inversões sobre o que não se viveu, semelhante a um balde de água fria na cabeça, mas a antítese é a perda da realidade, ou seja, a vida real fica dependendo do sonho. E aí ultrapassa a realidade de se sonhar com a conquista do emprego estável, da família, do grande amor da vida, da casa própria ou mesmo da volta ao mundo em 60 dias. Quando isso cessa, a insatisfação gera um vazio sobre o que não se tem mais o que sonhar.

Claro que o sonho pode caminhar com a utopia e a epifania, pode ser divino, ambicioso, manifestador, inspirador, de natureza quase sobrenatural, mas tem que se conduzir ao lado da concretude. Tem que coadunar ao que escreveu Philippe Lacoue-Labarthe: “O céu dos santos é debaixo dos seus passos a própria terra”. Afinal fomos criados para não desistir, estamos em uma sociedade que se orgulha dos resilientes.

Pensar no  sonho sob uma condição de mercadoria que se compra, vende  ou troca, seria controlar o rio pela margem. Seria abrir espaço para a frustração, após usar o telemarketing para mensurar o  comportamento pós-compra de algo que pode ser dispensável.

Quando o peru fica mais importante que a ceia de natal, abre-se espaço para encenação de camadas desnecessárias, deixam-se células tumorais no meio da divisão celular para alcançar limites inúteis de morfina. Diria que o sonho se torna fake e o céu termina caindo sobre si.

Com efeito, o sonho nunca deveria ser  visto como um  contrato fechado, completo que leva ao vício por doses de cocaína cada vez maiores, pois o valor das coisas começa a se banalizar e a tolerância, depois de um tempo, não permite voltar aos palcos e ter consciência do que apenas precisamos para o dia de hoje. E talvez corroborar com Machado de Assis: “É melhor, muito melhor, contentar-se com a realidade; se ela não é tão brilhante como os sonhos, tem pelo menos a vantagem de existir.”

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Luciana Santa Rita