Quando o amor primeiramente existe, surge no mundo e só depois se define.

“ […] As relações entre uma alma e outra, através de coisas tão incertas e divergentes como as palavras comuns e os gestos que se empreendem, são matéria de estranha complexidade. No próprio ato em que nos conhecemos, nos desconhecemos. Dizem os dois “amo-te” ou pensam-no e sentem-no por troca, e cada um quer dizer uma ideia diferente, uma vida diferente, até, porventura, uma cor ou um aroma diferente, na soma abstrata de impressões que constitui a atividade da alma. […] (PESSOA, F. Livro do Desassossego, São Paulo: Companhia das Letras, 1999, p. 119).

 

Quem nunca se sentiu a deriva em uma imensidão de tédio, nadando desordenadamente, e mesmo, assim, afundando lentamente na morada sozinha do próprio coração. Mas semelhante a uma luz diáfana, uma energia chega, como uma odisseia, uma epidemia, e a guisa de uma tonta e intrépida  frase, que não é nova, permite o coração pulsar frente a um oceano de palavras inesquecíveis, como uma flecha incapaz de errar o alvo.

O trecho acima de  Fernando Pessoa  poderia desvendar o efeito da declaração do “Eu te amo”, além da prosa, do verso, ou seja, do começo. Poderia ser uma preparação apocalíptica do peregrino que está por vir. Poderia ser um atalho contra a ansiedade e o distanciamento das reticências do desconhecido. Poderia ser um mantra do amor, fechado em uma caixa transparente, pois quando apenas um consegue ouvir, a frase revela libertação para quem pronuncia, mas é defensiva e ofensiva ao chegar até o outro.

Às vezes, proferimos a frase, sem desembarcar de nós mesmos, como uma tentativa de pluralizar o amor. Fazendo analogia a frase de J. Campbell, em o Voo do Pássaro Selvagem: ” […] Vá em frente, viva a sua vida, é uma boa vida – você não precisa de mitologia, o amor é algo pessoal.” Neste contexto, as palavras se perdem no vazio.

Penso que  na maioria das vezes, a existência de um amor é a história de um herói. Às vezes se encaminha ao sul e talvez se chega ao norte. Nesse sentido, seria o despertar do hemisfério feminino do cérebro, vestido dos versos de Chico Buarque na música “Eu te amo”: “Ah, se ao te conhecer dei pra sonhar, fiz tantos desvarios. Rompi com o mundo, queimei meus navios. Me diz pra onde é que ainda posso ir […]”.

 

Uma frase semelhante a melodia de uma música com poder de mergulhar dentro de nós como um milagre, concedendo a vida uma nova versão e passando a mensurar os instantes de felicidade. Um mundo fora da mesmice, que não permite enxergar risco de se acabar disperso. E uma vez dita, nunca é suficiente, e nos tornamos agentes de mercado do pleonasmo.

Entendo a boa intenção do “eu te amo” à medida que incita o poder de conceder resgate a um corpo que morreria de solidão no mar aberto, sem distinguir o desertor na resiliência a sua cota de dor.  Entendo também poder da conquista da frase, que por mais simplória e banal que soe, seria a base de todo o fluxo e refluxo da mutação das coisas.

Todavia, há uma conclusão duvidosa em imaginar, conforme se declara o amor, que após a espera da declaração se possa partilhar eternamente também aquele estado de felicidade, e  com um mínimo de esforço  tornar a plateia da declaração, uma vida inteiramente real.  Poderia se consumar como um adeus ao esperar pelo amanhecer.

Nesse momento não sei se a definição suprema representa uma verdade ou a possibilidade de ser mais do que uma frase agradável e popular ou, em última instância, uma frase mercadológica ou profissionalizante para garantir a indissolubilidade das relações. Afinal, quem entende de autoestima, garante o bem que a frase pode proporcionar nas relações familiares, profissionais, de amizade ou de amantes.

Em momentos anteriores, entendia que seria esperar e aguardar inertemente a mesma intensidade e duração correspondentes.  E na avidez do encanto, a declaração de amor seria mais que palavras, pois afirmaria a disposição de entrega, a rejeição à dúvida da solidão ou mesmo a renúncia de um eu solitário.

Só que a repetição pode virar um jingle e ser usada na falta de assunto e tornar uma condenação que tanto serve para bem ou mal da relação ou quem sabe ser usada para repudiar a insustentabilidade da indiferença da falta que o outro traz. Pode ser que escravize e sufoque o outro, deixando-o a possibilidade de outras coisas. Penso que as declarações são repetições de coisas que já não possuem a importância do ineditismo.

Poderia ser a marca do inconstante ou uma fome mortífera de um desejo de que a vida  suporta frente ao domínio de um passado sem rosto. Por isso toda declaração tem visto de ubiquidade, exige a comprovação de uma vitória antecipada, mas não resiste quando não consegue se submeter a vencer e, não conformar-se, em ser vencido na primeira batalha. Seria uma indignação a roupa que não dura ou que depende do lançamento da coleção e o amor não reciproco, portanto, um caminho de desilusão.

Gosto de pensar em declarações quando a dúvida já não é o tema de fragilidade da relação ou quando já se teria superado o aprender a conviver, ausente de emoções de chita, ou de seda, ou de brocado, como diz Fernando Pessoa.

Desconfio da afirmação do “eu te amo” na primeira noite de amor ou na primeira viagem de aventuras ou na primeira conversa descontraída. Em principio, porque nela está implícita a urgência que existe em uma espécie de “amor desconfiado”. Por outro lado, antecipa a definição sobre ao que veio, perde a euforia ou o caráter do medo do tom sustenido.

Logo, a carência pode ser o agravante do amor incendiado e entoado de palavras românticas. Talvez o “eu te amo” seja uma verdade ou uma mentira mal contada, mas permite o desejo de uma vida imaginária. Às vezes é o jeito moleque de um dizer ao outro o quanto o deseja para a noite, mesmo quando o sol se espreguiça. Às vezes é um fingimento persuasivo, sutil em repetições não tardias que revelam a linguagem secreta do amor.

Pode ser uma simples palavra com o poder de exigir a presença, a onipresença ou mesmo um atendimento do tipo “miojo” das nossas necessidades instantâneas  em que a cobrança sabe exatamente onde buscar, desperdiçando-se como água entre os dedos.

Por um lado, percebo que a  sensibilidade dos versos tem a ver com a experiência do encontro em si, reforçando a leveza do amor que pode falar. Por outro, é a dinastia do filme mudo que reforça a gravidade da cobrança incondicional pela atenção que é um dos grandes riscos, principalmente, se o outro cansa facilmente dessa repetição.

Eu, porém, vejo a declaração como um esforço de bondade e de fé e se me disserem que é  um ato nulo ou falho, não discuto a coragem de quem o profere. Rejeito-a como passatempo ou como um discurso que possa enganar aos inocentes.

E diante da possibilidade do amor, penso que só quem libera a frase, encontra o caminho, seja pela aceitação do outro ou pela ratificação da frase de Sartre que nos ensina que nossa existência precede nossa essência. Analogamente, o amor primeiramente existe, “se descobre, surge no mundo; e que só depois se define. O homem, tal como o concebe o existencialista, se não é definível, é porque primeiramente é nada. Só depois será, e será tal como a si próprio se fizer.”

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Luciana Santa Rita