Vida (nossa), esta tão “assenhada”.

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Vida (nossa), esta tão “assenhada”. Brevíssimos comentários acerca de alguns elementos das sociedades de controle.

Nossa vida está cada dia mais “assenhada”. Parece até não ser nossa esta vida que só pode ser acessada, a cada instante, a partir de uma (ou várias) senha(s). Das senhas, precisamos delas para acessar bancos, comunidades digitais, escolas, hospitais e porque não, nossa própria casa. – Não entro em minha casa sem antes inserir algo em torno de sete dígitos numa combinação de alfanuméricos em uma maquineta e seus gadgets miraculosos. No dia em que por acaso eu não me lembrar de todas estas senhas terei que dormir na rua. – E isto só vem a se acentuar, na medida em que a ênfase no corpo parece sair de cena (ou se transformar), e a nossa alma passa a ser controlada pelo uso imoderado de senhas. Lembro-me neste momento de passagens em “Post-scriptum sobre as sociedades de controle”, texto visionário, escrito por Deleuze em uma espécie de resposta a Foucault.
Nas sociedades disciplinares, conforme importante análise de Foucault, tudo incidia sobre o corpo – a ser confinado, docilizado, adestrado, higienizado… por fim, disciplinado, e o modelo de centro penitenciário criado por Jeremy Bentham, denominado Panóptico, literalmente “fez escola”, ao inspirar a construção desde o século XVIII de edificações e práticas, que serviram a hospitais, manicômios, igrejas, fábricas e também a escolas. Ainda vemos nos dias de hoje edificações que apresentam as características do Panóptico, que consiste no seu modelo inicial, em uma grande torre de vigilância no centro, cercada por celas ao redor. Quem está dentro das celas tem a constante sensação de estar sendo vigiado por algo ou alguém do alto da torre central, mesmo se não for possível de se assegurar da presença de algo ou alguém a vigiar. E esta sensação, promovida por uma suposição de vigilância centralizada, exerce uma força disciplinadora sobre o corpo, que passa a se moldar ao que, mesmo instintivamente, parece ser mais adequado para escapar de possíveis punições baseadas no olhar atento do vigia. Dispositivos externos ao corpo, funcionando como uma espécie de molde a limitar o que pode um corpo. O modelo prisional, suas práticas e moldes a nos indicar os balizamentos para um corpo. Corpo individual, que desde sua inserção na família, passando à escola, à fábrica, à igreja, de vez em quando ao hospital ou manicômio, podendo ir ao exército ou à prisão, sai de um espaço de confinamento para entrar em outro, sucessivamente, tal como a toupeira e sua relação com a toca. Muito rica a analogia que Deleuze faz ao que ele chamou de o animal das sociedades disciplinares: a toupeira. Animalzinho que não costuma enxergar bem, e que cava a sua própria toca, cuja espessura e profundidade funcionam como um dispositivo externo a disciplinar os movimentos de seu próprio corpo. E sair da cela, digo da toca, para a toupeira, é uma questão de vida ou morte, pois sempre pode haver um predador à espreita, no alto de uma grande torre panóptica central (mesmo que imaginária).
Se Foucault utilizou o modelo Panóptico de Bentham para reforçar a noção de disciplina, Deleuze escolheu trabalhar com outro indicador, a noção paranóica de controle, inspirado em William S. Burroughs, para nos apresentar às sociedades de controle, que irrompem século XX afora. O controle adota uma estratégia, que segundo Deleuze, tende a ser um tanto mais perversa do que a adotada pela disciplina, pois opera sinopticamente, através de um tipo de vigilância descentralizada, fragmentada, quase imperceptível, capaz de monitorar a um só lance de vista as diversas partes de um conjunto.  É como se cada um de nós e os dispositivos que criamos funcionassem como uma célula de controle, como somos muitos, multiplicam-se unidades de controle. Ao invés de uma torre central, o controle se desprega, se descentraliza, perdemos a sua referência, pois ele pode operar de qualquer parte e/ou em lugar nenhum, nos dando até a falsa e eventual sensação de que estamos livres. Deleuze apresenta a serpente como o animal das sociedades de controle, pois este animalzinho, que na grande maioria de suas espécies, também costuma não enxergar bem, passeia a céu aberto, quase sem medo de predadores, sem notar que ao se movimentar, suas velocidades e lentidões são modulados pelos anéis que quase invisíveis recobrem o seu corpo. A serpente carrega consigo, toda orgulhosa, seus anéis de controle. Se a disciplina molda o corpo, o controle modula nossas velocidades e lentidões.
No cenário das sociedades de controle os espaços de confinamento dão lugar a convergências inusitadas, virtualizações radicais e desterritorializações absolutas. As fronteiras entre empresa, casa, igreja, escola se tornam irrelevantes. Você não precisa estar confinado em uma sala de aula, um lugar específico, para aprender, é possível fazê-lo na empresa; você não precisa estar confinado em uma estação de trabalho para produzir, pode fazê-lo em sua casa. Não é a escola que ensina ao mercado, mas este que ensigna, “dá ordens” à escola, apresentando as demandas e conteúdos que merecem estudo e passam a ter relevância. É quando, por exemplo, a fábrica dá lugar à empresa, que por sua vez se torna uma corporação, que se distribui mundo afora, em formato transnacional-multinacional. A linha de produção está numa parte do globo, a montagem n’outra e a entrega dos produtos pode acontecer em qualquer lugar. Caso você esteja insatisfeito, ligue para um número de telefone e converse com uma gravação, isso após digitar senhas intermináveis. As prisões dão lugar a cada vez mais penas substitutivas que através do uso das coleiras digitais, colocam nas ruas prisioneiros fora dos espaços de confinamento dos presídios, em “ressocialização”, a dividirem as mesmas esquinas com indivíduos (supostos cidadãos de bem) que com seus smartphones e iPhones, são também monitorados a céu aberto pelas mesmas tecnologias GPS. Prisioneiros e supostos cidadãos de bem, ligeiramente separados apenas por definições de status social, mas unidos por uma mesma tecnologia, em defesa da sociedade.
Cada tempo surge com suas máquinas e seus problemas, e as maquinetas de hoje e do por vir se conectam a uma infinidade de gadgets sempre miraculosos a encher os nossos olhos de brilho, da luz que emana das telas de touch-screen. Antes, ficávamos cheios de dedos, no sentido de um excessivo cuidado de não sujar a tela de nossas maquinetas vistosas, hoje, você pode tocar a tela a vontade, e haja vontades, sempre aguçadas pelas mágicas de aplicativos que nos parecem necessários, mesmo que depois  de alguns minutos até venhamos a nos esquecer que eles existem.
Podemos estar aqui, acolá e em lugar nenhum, em uma espécie de “estar presente sem estar lá”, conforme apontamentos de Virilio, pois o que importa não é o corpo físico, mas suas velocidades e lentidões. E onde quer que venhamos a estar, nossos movimentos, velocidades e lentidões, são monitorados e modulados por uma espécie de controle a céu aberto. Não importa que haja um corpo e de quem quer que este corpo seja, se a disciplina funciona melhor sobre o indivíduo, indiviso, menor recorte de um social, Deleuze nos sugere o fenômeno da “dividualização”, em que é possível dividir cada indivíduo em porções, cada vez mais fragmentadas. Passamos a ser distribuídos por códigos de mais ou menos valia, cifrados em senhas, que nos transformam em meros dados informacionais.  Um corpo cai em frente ao balcão e atendimento de um hospital, antes de se abrir um prontuário para a internação, pede-se a prontidão de uma senha que faça jorrar fluxos pecuniários para bancar o pronto-atendimento. – O corpo passa a ser secundário, importam mais os dados primários de seu número de cartão de crédito e sua movimentação, seus traços digitais tal como pegadas no deserto da autoestrada informacional que chamamos Internet. Em um cenário como este, o próprio corpo precisa se “assenhar”, no sentido de modificar suas configurações imagéticas, para se adequar a exigências dos tempos em que cirurgias gráficas “photoshop” e médicas “silicone” se fazem exageradamente presentes
Penso que estamos inseridos em um contexto híbrido em que a disciplina e o controle se apresentam, não creio ter havido uma ultrapassagem completa de um modelo de sociedade a outro. Penso que os elementos de ambos os modelos de sociedade se fazem presentes nos dias de hoje, muitas vezes de maneira complementar, a moldar corpos e modular velocidades e lentidões. Fosse Kafka escrever um livro hoje, poderia muito bem se chamar “A senha”, ou de repente “Assenha” e este poderia ser um livro de grande utilidade e de muitos usos, pois conforme Deleuze e Guattari, este escritor de Praga, através de sua literatura, nos inspira a inventar saídas, o que não deixa ser uma espécie de proposta de subversão das senhas.  
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Rogério Felipe