Cimrman e a mentira

"Por que, na vida cotidiana, os homens normalmente dizem a verdade? – Não porque um deus tenha proibido a mentira, certamente. Mas, em primeiro lugar, porque é mais cômodo; pois a mentira exige invenção, dissimulação e memória." – F.Nietzsche

A data exata do nascimento de Jára Cimrman (Iára Tsímerman) não é clara. Sabe-se, entretanto, que ele nasceu entre os anos 1869 e 1874 em Viena. Filho de uma atriz austríaca e de um alfaiate tcheco, Cimrman não se considerava austríaco, conforme indica a nota encontrada em seu diário: "Eu gostaria de ver o meu país de origem: a Boêmia". Cimrman foi certamente o maior tcheco que já existiu, tendo feito contrubuições nos campos da arte, medicina, ciências e economia, entre outras. Uma espécie de Da Vinci vindo do leste da Europa, apesar de possuir uma grande diferença com o mestre italiano: Cimrman nunca obteve reconhecimento em vida. Ele foi visto pela última vez em 1914 em Liptákov, localizada na região montanhosa ao norte da Boêmia. Nunca mais se ouviu nada a seu respeito. Ou será que se ouviu sim?

 

busto de Cimrman

auto-escultura com feições completas, Jára Cimrman, Praga, data desconhecida

Tudo isto é, óbviamente, uma grande mentira. Cimrman nunca existiu, apesar de ser um dos personagens mais populares da República Tcheca. Ele foi criado por Jiří Šebánek e Zdeněk Svěrák (este último é o fantástico humorista que atuou no filme vencedor de um Oscar, "Kolja", como um violoncelista perseguido pelos comunistas) e é personagem de diversas peças de teatro e de alguns filmes. O "Teatro Jára Cimrman" fica perto da minha casa, no meu amado bairro Žižkov, e é certamente um dos teatros mais conhecidos em Praga. De vez em quando pode-se encontrar nos arredores do teatro pessoas dormindo na rua – isto significa que os ingressos de uma nova peça sobre Cimrman serão vendidos nos próximos dias.

O humor destas peças e dos filmes é tipicamente tcheco, e este povo se mostra muito espirituoso quando quer deixar seu mau-humor de lado. Cimrman foi uma espécie de gênio tardio com um coração maior do que suas ambições. Ele foi co-inventor de muitas maravilhas do século passado, como o dirigível Zeppelin ou o relógio feminino suíço. Durante suas investigações no Ártico, ele não encontrou o exato ponto do Pólo Norte por meros sete metros. Criou no Paraguai o primeiro show de marionetes de que se tem notícia, em Viena fundou a famosa escola de criminologia, música e ballet, ajudou os cientistas vencedores do prêmio Nobel Sr. e Sra. Curie, foi assistente na primeira cirurgia plástica da história, ajudou na construção da torre Eiffel, corrigiu a harmonia de uma das valsas de Strauss e criou a filosofia do Externismo. Mas infelizmente não ficou conhecido por nenhum destes maravilhosos feitos. Citando-o novamente, ele diz em meio a sua dolorosa existência: "Para alguns eu me tornei ridículo, e para a maioria dos outros também."

Eu indico a todos o filme "Jára Cimrman lezící, spící" (Jára Cimrman deitado, dormindo) no qual o já citado Zdeněk Svěrák faz o papel do grande gênio. O filme possui um humor finíssimo e cenas sublimes. Depois de ter fracassado em se tornar famoso, Cimrman se muda para o interior para dar aulas para crianças. Ao entrar na classe de aula pela primeira vez, ele pede aos seus alunos, antes de mais nada, que citem vários tchecos famosos. Hus, Komenský, Smetana. Em seguida, ele diz "Ah, crianças, eu esqueci de me apresentar! Meu nome é…" e escreve seu nome na lousa, junto com os citados gênios.

Cimrman e a lousa

Numa outra cena, que é de uma beleza fantástica, ele está com as crianças no campo, e ao encontrar uma cerca separando dois terrenos, ele lhes explica: "Crianças, na vida vocês encontrarão vários obstáculos. Sempre me foi dito que nós podemos saltar ou desviar dos obstáculos, mas nunca me foi permitido agachar para atravessá-los. Eu, pessoalmente, não vejo problema em nos agacharmos caso tornemos a nos levantar adiante." e então todas as crianças tchecas começam a se agachar para passar por baixo da tal cerca. No meio destas há um pequenino menino alemão que fala muito pouco tcheco, e que é o único capaz de passar pela cerca sem se abaixar, mas isto justamente por ser muito pequeno. É uma belíssima metáfora sobre toda a história tcheca e os abusos sofridos mas, ao mesmo tempo, possui um otimismo belíssimo. Vale lembrar que o filme é de 1983 e o país ainda estava sob o domínio comunista.

Em 2005, um canal de televisão tcheco decidiu abrir um concurso para escolher os cem tchecos mais famosos da história, inspirado nos cem britânicos mais famosos exibido pela BBC e, da mesma forma que o canal inglês, qualquer pessoa poderia votar em qualquer candidato, sem prévia filtração. Bem, vocês já imaginam o resultado, não é mesmo? Jára Cimrman, anos após a sua morte, é coroado pelo voto popular como o maior tcheco que já passou por este pequenino planeta, mas o canal de televisão decidiu que somente pessoas reais poderiam ganhar o prêmio. O vencedor final acabou sendo o Rei Carlos IV.

E mais uma vez Cimrman fica à sombra devido às vontades de pessoas importantes e às brigas por poder. Mas todos os tchecos, e também este brasileiro que vos escreve, acreditam que o mundo ainda virá a saber a verdade. Ou não.

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Gilberto Agostinho