A língua secreta

Ou, das obras que se destinam a um leitor que não sabemos quem é.

Uma noite, senti que me aproximava de uma lembrança precisa; antes de ver o mar, o viajante sente uma agitação no sangue. Horas depois comecei a avistar a lembrança; era uma das tradições do deus. Este, prevendo que no fim dos tempos ocorreriam muitas desventuras e ruínas, escreveu no primeiro dia da criação uma sentença mágica, capaz de conjurar todos os males. Escreveu-a de maneira que chegasse às mais distantes gerações e que não a tocasse o azar. Ninguém sabe em que ponto a escreveu nem com que caracteres, mas consta-nos que perdura, secreta, e que a lerá um eleito.

“A Escrita do Deus”, de J. L. Borges

 

Lembrei desse trecho do conto “A Escrita Do Deus”, de Borges, depois de ler algumas passagens das memórias do coronel Baden-Powell, o insigne fundador do escotismo e personificação perfeita do espírito do colonialismo britânico. Nelas, o orgulhoso militar narra a derrota e subseqüente humilhação do último rei do império Ashanti, situado onde hoje é Gana. Na ilustração ao lado, retirada de suas memórias, podemos ver o momento em que o rei Prempeh é obrigado a mostrar submissão diante do governador britânico, o Sr. Maxwell, e de outros dois oficiais do exército de Sua Majestade. A cena é narrada pelo coronel civilizador:

A primeira das condições impostas foi que Prempeh deveria submeter-se ao Governador, de acordo com as formas e hábitos nativos, significando uma rendição humilhante. (…) nesse caso, insistiu-se para que o próprio rei pessoalmente conduzisse a cerimônia.(…) ele caminhou a partir de sua cadeira, acompanhado da rainha mãe, e, ajoelhando-se diante do Sr. Maxwell, abraçou seus tornozelos. Foi algo pequeno, mas foi um golpe no orgulho e no prestígio dos Ashanti como nunca haviam sofrido antes.

O rei e os outros chefes foram feitos reféns dos britânicos e depois mandados para o exílio. As propriedades dos Ashanti foram confiscadas, bem como seus tesouros, e é com orgulho que Baden-Powell atesta que esta tarefa foi confiada a “uma companhia de soldados britânicos, o que foi feito de maneira muito honesta, sem nenhum caso de saque.” Os ídolos religiosos foram devidamente queimados, “gerando esplêndidas chamas”.
Lembrei do conto de Borges porque, quando o rei dirigia-se para o ato de humilhação, ele foi coberto por um manto especial, feito dias antes para esta ocasião, chamado de “Manto Régio da Lamentação”. Suas estampas contam histórias, lendas e provérbios do povo Ashanti. O símbolo ao lado representa o rei rodeado por ancestrais e espíritos protetores, que auxiliam na manutenção do reino. O seguinte ilustra um provérbio Ashanti: “quando um carneiro é bravo, sua coragem vem do coração, e não dos chifres”.
O rei Prempeh sabia, da mesma forma que o sacerdote do conto de Borges, que sua cultura e suas tradições corriam o risco iminente de serem extintas. Não sei se o manto trazia, além dos símbolos que foram interpretados, outros significados ocultos. Eu penso que sim. Podia conter uma sentença mágica, que permanecesse secreta aos invasores; podia ser o testamento do rei e do seu povo, que talvez desaparecessem; podia ser um discurso destinado aos deuses, um apelo, para que estes não os abandonassem nessa hora tão terrível.
A quem se destinavam as mensagens ali cifradas é mistério. Decididamente, não para os ingleses, que não entenderam e nem deram muita bola para o manto, que foi “confiscado” por um soldado que se afeiçoou a ele e tomou-o do rei quando este estava sendo encarcerado. Posteriormente perdeu-se; foi reencontrado, e hoje faz parte do inventário do Smithsonian Institution, em Washington. Sobreviveu, portanto.
O que me leva a outra obra mágica que também sobreviveu e que, entretanto, deveria ter sido destruída. Refiro-me ao chamado “Manto de Apresentação” de Artur Bispo do Rosário. Difícil classificá-lo, como é difícil classificar o próprio Bispo do Rosário. Diagnosticado “esquizofrênico-paranóico”, passou mais de 50 anos internado na Colônia Juliano Moreira, instituição criada em 1924 para abrigar os “indesejáveis” (leia-se mendigos, alcoólatras, negros e pessoas com problemas mentais) da sociedade carioca da primeira metade do século XX. Foi aí que Bispo do Rosário criou seu trabalho. Que é único e deslumbrante. Já li alguns artigos tentando ligar, de alguma forma, seu trabalho com o de Duchamp. Completo disparate: isso faz tanto sentido quanto comparar seus estandartes com a Tapeçaria Bayeux apenas pelo fato de que são bordados e eventualmente apresentam semelhanças. Compara-se Bispo do Rosário a Duchamp porque aquele fez trabalhos a partir de objetos triviais, inclusive uma roda de bicicleta semelhante ao ready-made de Duchamp, deslocados de seus contextos. Teoriza-se sobre a possibilidade de Bispo do Rosário ter visto reproduções do trabalho de Duchamp. Isso é negar a capacidade criadora do sergipano e inventar analogias apenas em função da aparência, o que é de uma enorme superficialidade. É o mesmo que achar que o trabalho de Mondrian, influenciado pela Teosofia, é análogo a um padrão geométrico da cerâmica Marajoara, por exemplo.
Tanto a Tapeçaria Bayeux quanto o trabalho de Duchamp pressupõem um público capaz de interpretar a linguagem empregada. O trabalho de Bispo do Rosário, não. Até onde sabemos, Bispo do Rosário via-se como um enviado de Deus, e sua obra dialoga exclusivamente com Ele. Nesse sentido, sua obra tem relação com a arte do Paleolítico, que também não era feita para a contemplação de um público. As pinturas de Lascaux eram, provavelmente, dirigidas aos deuses, a obra de Bispo de Rosário a um só deus.
O mesmo ocorre com o manto do rei Prempeh: sua linguagem destina-se a alguém que não sabemos quem é. Esta é a semelhança que vejo entre o manto do rei africano e o manto de Bispo do Rosário: ambos foram criados não para a nossa apreciação estética, mas apenas para deus e para os deuses. Ou para algum leitor secreto, como no conto de Borges, que não conhecemos, mas que certamente interpretará a linguagem ali cifrada de modo completo e muito mais intensamente do que alguém que acha pertinente ligar um manto sagrado ao trabalho secular de um francês distante.

ps: intuo que o manto do rei Prempeh foi feito para perdurar. Já o manto de Bispo do Rosário foi feito para ser destruído: ele queria ser enterrado com ele, para se apresentar a Deus vestindo-o, e não foi atendido.

About the author

Marcos Schmidt

Marcos Schmidt é designer gráfico e ilustrador. Vive e trabalha na irremediável cidade de São Paulo.