Dois momentos de sinceridade


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Dois momentos de sinceridade, dos quais o primeiro realmente aconteceu e o segundo é um senhor engodo. Mas que alguma forma se relacionam. O primeiro, o de verdade:

O artista J. H. foi até a galeria R. buscar seu portfólio. Ele havia deixado lá a pedido do próprio dono da galeria, o senhor R. Que estava lá, não sei se num bom ou num mau dia, e estava mais falante do que o habitual. Recebeu J.H. com grande mesura, apesar de dizer-lhe que, infelizmente, seu trabalho não se encaixava na linha dos trabalhos expostos na galeria R.. J.H. agradeceu a atenção de R. e perguntou-lhe se deveria mudar algo no seu portfólio.

– De jeito nenhum – respondeu R., que desembestou a falar, para espanto de J.H. – não acho que você deva mudar nada. O caso é que… olha, J., eu vou ser sincero: isso aqui (aponta genericamente para algumas das telas penduradas nas paredes da sua galeria) não tem nada a ver com qualidade, ou com qualquer coisa que se relacione com isso. Nada. Nunca teve.

– Olha para esse quadro (uma pintura de faixas horizontais azuis e violetas, alternadas): isso é uma bosta, J., eu sou o primeiro a reconhecer. É pretensamente séria, e o F. (o autor da obra) tem um ótimo discurso e conhece todo mundo. Mas, me diga: o que há aqui além dessas faixas? Esquecendo o que T. M. (crítico) escreveu sobre ele, e que poderia servir para qualquer artista do universo, o que sobra aqui? Tem algo de novo? Ela é insípida, tola e vazia de qualquer idéia. Por isso se encaixa em qualquer discurso. Porque ela não passa de uma padronagem, de um papel de parede extremamente caro.  Um dia o F. veio aqui com uma camisa pólo igual a essa pintura. Perguntei se o quadro era inspirado nela, e F. ficou puto. O F. leva a sério a coisa toda, por incrível que pareça. Eu, não. Já estou há muito tempo nisso prá levar a sério qualquer coisa.  Por que eu tenho o F. aqui? Porque vende, e vende porque foi devidamente chancelado pela crítica e porque é suficientemente anódino para se pendurar em qualquer sala. É exatamente uma camisa pólo, sem tirar nem pôr.

– Não acho que nada do que eu exponho aqui vá durar mais do que uns cinco ou seis anos. Daqui a dez anos, nem eu vou me lembrar do nome desses artistas.  E pouco importa, na verdade.

– Talvez eu tenha algo para te dizer: faça-se difícil. Melhor: faça-se hermético. Se há algum segredo, é esse. Seja incompreensível, seja enigmático.

Essa história me foi contada pelo artista em questão. Há alguma licença nas falas do dono da galeria, mas a essência do seu desabafo, que deixou J. H. espantado, se mantém. J. H. até achou que R. havia bebido alguma coisa antes da conversa, já que estava agitado demais. A galeria R. é uma das mais importantes de São Paulo.

O segundo momento de sinceridade não é nada sincero, já que é um texto fictício (e que texto não é?) de 1951, do estranho Giovanni Papini. Confesso que não o conheço, e o que sei dele refere-se exclusivamente à polêmica que surgiu por causa desta passagem que se segue. Seria parte de uma carta escrita por Picasso endereçada ao autor. Ou de uma entrevista, depende de quem conta a história. Tudo mentira, ao que parece. O fantasioso Papini inventou a tal entrevista (ou carta). Segundo algumas versões, fez isso a pedido da OTAN (!), para manchar a imagem de Picasso, que era comunista.

Tendo por certo que a tal entrevista é uma arrematada fraude, ainda assim acho que é um texto interessante e que é pertinente quando se fala de arte contemporânea. Já ouvi, e não me foi narrado, uma confissão semelhante de um dos grandes artistas brasileiros contemporâneos. Terminava do mesmo modo: ”Eu sou um charlatão, eu vivo disso”. Segue o texto:

Os refinados, os ricos, os ociosos profissionais, os destiladores de quintessências buscam o que é novo, estranho, extravagante, escandaloso na arte. Eu mesmo, desde o cubismo e além dele, contentei esses mestres e esses críticos com todas as bizarrices mutáveis que me passaram pela cabeça.

E quanto menos eles me compreendiam, mais me admiravam. À força de me divertir com todas essas brincadeiras, com esses quebra-cabeças, enigmas, e arabescos, eu fiquei célebre, e muito rapidamente. E a celebridade para um pintor significa vendas, lucros, fortuna, riqueza, E hoje, como o senhor sabe, eu sou famoso, eu sou rico.

Mas, quando estou sozinho comigo mesmo, não tenho a coragem de me considerar um artista no sentido antigo e grande da palavra. Giotto, Ticiano, Rembrandt e Goya foram grandes pintores: eu sou apenas um divertidor do público – um charlatão.

Compreendi o tempo em que vivi e explorei a imbecilidade, a vaidade, a avidez de meus contemporâneos. É uma amarga confissão a minha, na verdade mais dolorosa do que parece. Mas ela tem o mérito de ser sincera. (Il Libro Nero, 1951)

About the author

Marcos Schmidt

Marcos Schmidt é designer gráfico e ilustrador. Vive e trabalha na irremediável cidade de São Paulo.