O atalho


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A busca pelo caminho mais curto é, em si, um fato estético. É por isso que Pelé é muito mais jogador do que Maradona.

Não vi Pelé jogar. Mas, pelos vídeo-tapes, há pouco o que questionar: ele foi o maior jogador de todos os tempos.
Pelé faz gols. De qualquer jeito. Gols espetaculares como aquele da final da copa de 1958, quando ele domina a bola no peito, dá um chapéu no sueco e arremata sem deixar a bola cair. Mas o que me interessa é o seguinte: ele também faz gol de bico, gol de canela, gol feito com raiva, com fúria, gol feito na marra.
Só não há gol com exibição de virtuosismo. Certamente, poucos terão dominado a técnica como ele dominou, além de ser um atleta fisicamente exuberante, praticamente perfeito. Pelé usava seu arsenal de recursos com um único objetivo, um único foco: fazer gols. Se driblava, era porque era preciso. A beleza plástica do lance era apenas um acessório luxuoso. A real beleza estava no modo econômico e brutalmente objetivo com que ele buscava o gol. Preferia sempre o caminho mais adequado, o mais curto para fazer o gol. Pelé buscava o atalho.
A crônica esportiva brasileira, certamente o nível mais baixo que um jornalista pode atingir, parece apreciar muito mais o virtuosismo estéril do que a precisão objetiva. Gostam dos dribles infinitos, que atrasam a jogada e possibilitam a reorganização da defesa: chamam isso de “fantasia”, que seria o oposto do “futebol de resultados”. Esta é uma oposição falsa, como se o futebol-rococó de um Denílson ou de um Ronaldinho Gaúcho fosse a resposta correta e adequada ao futebol horroroso da seleção brasileira de 1994, por exemplo. A questão é colocada de modo incorreto. Mas é compreensível: não se pode exigir muito de um jornalista esportivo. A maior parte mal sabe escrever, não vão compreender o que significa o atalho.
Aprecio os artistas que buscam por atalhos. Que fazem mais com menos. Que buscam o gol, e não o gol bonito. Pound escreveu: “uma definição de beleza: adequação ao objetivo”. O mesmo Pound que é capaz de substituir 900 páginas por duas palavras, economizando o precioso tempo do leitor e poupando muitas árvores, ainda por cima. Isso é assombroso.
Um artista econômico: Morandi.
Outro: Masaccio. Mais um: Chardin.
Há uma anedota interessante sobre Chardin. Perguntaram a ele sobre seu modo de pintar. Que respondeu: “vou pondo cores até ficar bem parecido”. Sua afirmação implica em economia, na busca do caminho mais curto para resolver as questões da fatura da pintura.
O que aprecio nos artistas do atalho é o fio invisível que une seu olhar, seu corpo ao seu objetivo. Uma espécie de compulsão extrema de apreender algo essencial de um objeto qualquer (que pode ser externo ou não), de modo intenso e imediato. Objeto e sujeito tornam-se um só, de modo que não se sabe onde fica um e onde fica o outro. Os limites ficam embaçados. Cézanne procedia desse modo, e Whistler também.
Em Masaccio, o atalho se dá na composição sintética. A estrutura é sempre econômica e limitada ao que há de mais essencial, sem adornos nem filigranas. Não é por acaso que muitos de seus trabalhos, aqueles “monstrengos, com capas imensas do tempo antigo”, por pouco não foram destruídos. Não havia espaço para o que não era estritamente necessário.
Dá-se o mesmo com Morandi. Sempre os mesmos objetos, variações mínimas na composição, a mesma paleta de cores rebaixadas e sua pincelada frágil. Tudo reduzido ao essencial. Tudo reduzido ao mínimo e gerando máxima potência.
Não que o caminho curto deva ser o único apreciado, longe disso. Em arte aprende-se o tempo todo que não há modo de reunir sob uma teoria única as grandes obras. Muito pelo contrário.
Mas andei pensando muito nesses últimos dias sobre como o atalho relaciona-se intimamente com o foco e a intensidade do artista. A procura pelo atalho relaciona-se com o corte do supérfluo, de todo o que não é estritamente necessário. E esse corte intensifica o trabalho.
O sujeito pode muito bem preferir o Maradona. Magnífico jogador, sem dúvida. Um “fantasista”, no entanto, e abaixo ainda do maior de todos os fantasistas, que foi Garrincha. Temo que a fantasia, nesse caso, funcione como um diluidor, um elemento que rouba a força do fenômeno estético por querer ser o lirismo da obra. Em Garrincha a coisa funciona, por ele ser o paroxismo da fantasia.
Mas Pelé é de outra ordem: ele é selvagem, é um animal que tem fome. E quando se tem fome, não se perde tempo com firulas nem enfeites. Vale apenas o gol, e o caminho mais curto para se chegar a ele. Sorry, Maradona; fica prá próxima…

About the author

Marcos Schmidt

Marcos Schmidt é designer gráfico e ilustrador. Vive e trabalha na irremediável cidade de São Paulo.