Cándido López, o Maneta de Curupaiti

Ninguém registrou a Guerra do Paraguai melhor do que o argentino Cándido López.

Pouca gente conhece o trabalho de Cándido López (1840-1902). Em poucas palavras, o argentino López foi o pintor que melhor retratou a Guerra do Paraguai. Um artista único, cuja obra não se encaixa em definições típicas e cujo valor só aos poucos vem sendo reconhecido.
Basta compararmos sua pintura com a de outro artista que também retratou a Guerra do Paraguai: “A Batalha do Avaí”, de Pedro Américo, que foi pintada entre 1872-1877. O brasileiro segue à risca o modo acadêmico de se pintar, seguindo o cânone do início ao fim sem deixar nenhuma regra de fora: o tema é épico, e Pedro Américo trabalha para que tudo seja mais dramático, mais intenso e mais romântico do que a realidade. Personagens importantes,como o General Osório, tem destaque garantido no meio da choldra, e ganha um doce quem achar um soldado negro na tela de onze metros de comprimento. Pedro Américo usa o registro patriótico e oficial: sua obra enaltece os vencedores, retratados em atos de coragem e bravura; os soldados são fortes, impetuosos. Pedro Américo fez aquilo o que se esperava de um pintor, já que ele conhecia muito bem seu público, e seu público não queria novidades e nem “fragmentos do real”: queria glória e grandiosidade. Pedro Américo era um pintor oficial que recebia encomendas oficiais das autoridades; a sua abordagem era, logicamente, oficial.
A obra de Cándido López é completamente distinta. Tomemos “Tuyuti, Maio de 1866” como exemplo. À maneira dos paisagistas holandeses, o céu toma grande parte da composição, e as figuras estão imersas na paisagem. A semelhança para por aí. Se observarmos as figuras mais de perto, vemos que elas parecem algo rústicas, meio singelas até. Não há registro épico; o que há é um intenso desejo de ser fiel à realidade. E Cándido López viu o que registrou: ele alistou-se voluntariamente para lutar. Torna-se um oficial e, em 1866, é ferido gravemente por um estilhaço de granada e perde a mão direita num ataque às fortificações paraguaias em Curupaiti. Daí o apelido de “Maneta de Curupaiti”. Posteriormente, tem todo o seu antebraço amputado e aprende a pintar com a mão esquerda. Durante a campanha, nas horas de descanso, desenhava e tomava notas em seus cadernos, guardava folhas e flores como referências, sempre preocupado com a fidelidade do registro. Afirmava “sacrificar a harmonia da arte pictórica pela verdade histórica”.
Voltando ao quadro, vemos as pequenas figuras retratadas de modo quase ingênuo, mas com grande acuidade. Não há nada que se assemelhe àqueles soldados musculosos que parecem ter saído de um afresco de Michelangelo, como na tela de Pedro Américo. Mas, em sua vontade de fazer um registro cuidadoso do que viu, López consegue transmitir com muito mais verdade o horror de uma batalha do que o drama de ópera italiana que Pedro Américo pintou. Aliás, sua maneira simples de pintar parece amplificar o efeito: aquilo que, à primeira vista, é uma pintura ingênua, quase naif, mostra-se cheia de detalhes horrendos da batalha.
Cándido López pretendia pintar uma série de 90 quadros sobre a Guerra do Paraguai. Pintou cerca de 50, sem nenhum apoio ou encomenda oficial. Somente em 1887 conseguiu que expusessem seus trabalhos. E ainda assim, graças apenas à pressão de companheiros que lutaram com ele e que queriam ajudá-lo, já que, além de ter perdido seu braço, López também era pai de 12 filhos.
Ele foi redescoberto em 1936 pelo crítico de arte José Leon Pagano, mas somente em 1971 o Museu Nacional de Belas-Artes da Argentina organiza uma grande retrospectiva da obra do pintor, e muitos estudiosos passam a considerá-lo o único pintor original e genuinamente argentino da sua época. Confesso conhecer pouco da arte argentina, mas Cándido López é, sem sombra de dúvida, original em qualquer contexto. Em circunstâncias muito difíceis, criou um modo de fazer arte que lhe pareceu o mais adequado para o que pretendia, e, com isso, desafiou as boas normas acadêmicas de se fazer uma pintura. Melhor para a sua pintura, que consegue, qualquer uma delas, ser melhor do que 1000 telas do oficial e premiado Pedro Américo. Vale a pena conhecer a obra do “Maneta de Curupaiti”.

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Marcos Schmidt

Marcos Schmidt é designer gráfico e ilustrador. Vive e trabalha na irremediável cidade de São Paulo.