Da brevidade, do milagre, e da fé

Ou, da percepção da relação entre dois fatos e da tentativa de compreender o sentido dessa relação entre eles.

Não sei se conseguirei escrever este texto adequadamente, dado o tumulto instalado em mim. Novamente pela conjunção de dois fatos.
O primeiro ocorreu ontem à noite, numa reunião (por um momento pensei em escrever comunhão, o que não seria inapropriado) de pessoas. O segundo, hoje de manhã. Meu espírito une os dois. E procura o sentido.
Não irei narrar o acontecido da reunião. Deixo isso para a imaginação do leitor. Resumo assim: repentinamente, de modo absolutamente surpreendente, numa fração de segundo concretizou-se tudo aquilo o que discutíamos, ou ainda iríamos discutir naquela reunião. Impossível repetir o fato, pois essa era sua essência: ser fugaz, irreproduzível, ser único. No exato momento em que ocorreu, fez-se silêncio. Penso que a atenção de todos que estavam presentes foi capturada de maneira absoluta.
Aquilo não existe mais. Concretamente, foi-se. Vai perdurar, entretanto, no espírito de todos que vivenciaram o momento.
Posteriormente, foi-me dirigida uma mensagem. Como se eu fora transparente, o emissor da mensagem viu minha descrença desolada e absoluta, meu niilismo amargo que me fere e me perturba.
E sua mensagem foi a crença do milagre. Que fique claro que não há, em nada do que relato, nenhuma conotação religiosa, até porque sou agnóstico (e que me chamem de tucano os ateus: foda-se, pouco me importa). Mas é óbvio que aquilo me tocou profundamente.
O segundo fato. Acordei de manhã. Tomei o café, e comecei a escrever o texto desta sexta. E pus para tocar o arquivo que havia baixado no P.Q.P. Bach ontem, mas ainda não tinha ouvido. Após alguns minutos, parei de escrever e fiquei apenas ouvindo. Fiquei ouvindo, profundamente emocionado, e comecei a juntar os fatos do ontem e de hoje. Abandonei o texto que estava escrevendo, e comecei outro. Este.
Aqui está o link para quem quiser ouvir e ter mais e melhores detalhes sobre a obra. Para quem não tem paciência, um resumo breve: a obra chama-se “Jesus Blood Never Failed Me Yet ”, de Gavin Bryars. Segundo a descrição que li no blog, Bryars trabalhava num filme sobre fodidos e sem-tetos e gravou pequenos trechos que estes cantavam enquanto eram filmados. E um deles cantou esse pequeno trecho:

Jesus blood never failed me yet
Never failed me yet
Jesus blood never failed me yet
There’s something I know for He loves me…

Não vou repetir a história que está tão melhor contada no post do P.Q.P. Bach. O que me interessa aqui é o efeito que esse pequeno trecho causou naqueles que o ouviram casualmente, porque Bryars deixou uma porta aberta, sem querer. Uma sala ruidosa ficou anormalmente quieta. Pessoas ouvindo o trecho que se repetia e se repetia “were moving about much more slowly than usual and a few were sitting alone, quietly weeping.”
O trecho de 20 segundos é repetido durante 75 minutos. Descrever isso é inútil. Nem mesmo dizer que são seis movimentos, com orquestra, sem orquestra, com Tom Waits, sem Tom Waits. Não dá conta ESCREVER sobre a peça. Uma pessoa sã diria ao ler a frase anterior: “O que pode haver de interessante numa frase sentimental de 20 segundos repetida por 75 minutos? Isso é RIDÍCULO!”
Agora, junto os dois fatos: não é ridículo, é um milagre.
São dois os milagres.
Um, aquele que ocorreu ontem, que aconteceu inesperadamente, que já foi e não é mais, e que está gravado na memória de quem o vivenciou.
Outro, que nasceu de algo semelhante. De um momento fugaz que por acaso foi registrado. E que possibilitou, anos depois, décadas depois, que alguém criasse uma obra intensa e tocante também a partir de um momento que já foi e não é mais.
Refletindo sobre isso tudo, chego a pensar que as coisas podem ter algum sentido.
E que um dia, quem sabe, saberei o que é ter fé.

a imagem acima é uma espécie de homenagem a um amigo que se foi.

About the author

Marcos Schmidt

Marcos Schmidt é designer gráfico e ilustrador. Vive e trabalha na irremediável cidade de São Paulo.