O pintor da vida moderna – parte 3: Conclusão

Ou, de como um poeta, um dândi e um pintor que só queria ser aceito pela academia acabaram com a necessidade de narrativa na pintura.

Por fim, chegamos àquilo que eu chamaria de um resíduo espiritual no pensamento estético de Baudelaire, expresso pela teoria das correspondências, já citada num artigo anterior. Em Baudelaire há sempre a busca da obra de arte mais ampla, que estimulasse a todos os sentidos e que fornecesse a totalidade da experiência sensorial. Ele expressa muito bem esse pensamento em sua crítica musical:

O leitor sabe que objetivos buscamos: demonstrar que a verdadeira música sugere idéias análogas em cérebros diferentes. Além do que, seria ridículo aqui ponderar a priori, sem análise e sem comparações, pois seria na verdade surpreendente que o som não pudesse sugerir a cor, que as cores não pudessem dar a idéia de uma melodia, e que o som e a cor fossem impróprios para traduzir idéias, sendo as coisas sempre expressas por uma analogia recíproca, desde o dia em que Deus proferiu o mundo como uma complexa e indivisível totalidade.

É por essa via que a obra de Whistler aproxima-se do pensamento de Baudelaire, através daquilo o que Argan chama de “continuidade sonora da cor, em dissolvências harmônicas nas quais se destacam timbres de poucas notas mais intensas”. Percebemos essa evocação musical já a partir dos títulos das suas obras, sobretudo nos seus Noturnos e nas suas Sinfonias.
Como Manet, Whistler buscava captar a sensação visual do modo mais direto possível, porém, por caminhos absolutamente distintos (ver o artigo James Abbot McNeill Whistler). Em comum com o trabalho de Manet, a temática urbana e a certeza de que a percepção não é apenas uma série de informações externas ao artista: é um estado da consciência.
Outro fato liga os dois pintores: ambos causaram escândalo no Salão dos Recusados de 1863 (uma breve nota: o Salão dos Recusados foi criado em função da grande controvérsia em torno da seleção dos artistas que teriam suas obras expostas no Salão Oficial. Para resolver a questão, o próprio Napoleão III decidiu-se pela realização de um salão paralelo, onde seriam expostas as obras que haviam sido recusadas pelo júri do Salão Oficial). Manet, pelo seu já citado “Almoço na Relva”, e Whistler por causa de sua pintura “Sinfonia em Branco nº 1”, um retrato de corpo inteiro de uma jovem vestida de branco, sobre um fundo branco. A pintura causou tanta comoção quanto o quadro de Manet, e foi igualmente mal-compreendido. Sobre o fato, uma afirmação de Robert Hughes:

A jovem sem expressão, num vestido branco virginal, em pé sobre uma pele de lobo, com um lírio em sua mão (o emblema floral do chamado Aesthetic Movement), foi proclamada como uma noiva após a noite de núpcias; ou ainda uma donzela decaída, ou uma vítima do “mesmerismo” (ou hipnotismo, bastante em voga na época) – tudo, exceto aquilo o que realmente ela era: uma modelo posando no estúdio de Whistler para dar a ele o pretexto de pintar variações de branco com extremo virtuosismo e sutileza. A história é que não havia história; foi a primeira investida de Whistler contra a tradição narrativa da arte inglesa, e de modo algum a última.

Eis o ponto central dessa história toda: através do pensamento estético de Baudelaire, dois artistas bastante diferentes entre si abandonaram a noção de conteúdo da obra de arte, abrindo as portas para a pintura moderna. Tanto para Manet quanto para Whistler, pintura é forma. Conteúdo não existe.
Whistler interpreta o pensamento de Baudelaire evocando sinestesias musicais, buscando a analogia entre cores e sons. Já Manet interessa-se por outro aspecto do pensamento do poeta: ele pinta a mudança, as transformações pelas quais a cidade passa, as novas personagens dessa cidade, tudo isso filtrado pela intenção de transpor para a tela a sensação visual por completo.
Esses dois caminhos distintos acabariam por gerar frutos: pela via de Manet, teremos o Impressionismo; pela de Whistler, o Simbolismo e a Art Nouveau.

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Marcos Schmidt

Marcos Schmidt é designer gráfico e ilustrador. Vive e trabalha na irremediável cidade de São Paulo.