Suscitar acontecimentos By Murilo Duarte Costa Corrêa / Share 0 Tweet Advertência O texto a seguir requer pouco mais de treze minutos para assistir aos vídeos da artista ucraniana Kseniya Simonova e, também, aquele sobre Blikkiersdorp, que em Africâner significa “Cidade de Lata”. Recomenda-se assistir aos vídeos antes de ler o texto. Acima, uma fotografia de uma partida de futebol entre habitantes da Cidade de Lata. A aparente distância do tema não milita contra nossa reflexão. Em 2014, a Copa do Mundo será no Brasil. Não se trata de prever que algo parecido possa nos acontecer, mas, sim, de notar que, entre nós, algo assim já aconteceu, e sempre volta a acontecer. O slogan da mostra Shoá “Reflexões por um mundo mais tolerante”, atualmente em exibição no SESC Pompeia, em São Paulo, não deveria ser “A história sobreviveu. Veja o holocausto uma vez para não ter de ver nunca mais”. Proponho, ao invés: “A história nunca morreu. Veja o holocausto uma vez, pois desde então ele não cessou nunca mais”. Oikos como pura forma O sublime nascido das mãos delicadas e urgentes de uma jovem artista, Kseniya Simonova, encontra, na Guerra Patriótica ucraniana, as imagens de um exílio interior. Um exílio que ressoa com o núcleo político de Blikkiersdorp, “a cidade de lata” que abriga os indigentes que, por ocasião da Copa do Mundo de 2010, foram retirados do centro da Cidade do Cabo, na África do Sul. Prometeram-lhes casas, e assim foram segregados, cercados e acondicionados em contêineres com janelas. Os contêineres da Cidade de Lata são a imagem da pura indeterminação entre público e privado: o oikos interiorizado, mas capturado fora da pólis. A forma de vida privada, que, desde os gregos, encontra no oikos seu terreno original, é agora atravessada por um poder excepcional que se vale de um movimento paradoxal capaz de enformar as vidas dos cidadãos ao mesmo tempo em que as exclui do terreno propriamente político (a pólis). As casas são contêineres, que etimologicamente remetem a um conteúdo a circunscrever; isto é, uma forma pura definida exclusivamente em função de seu conteúdo. No ordenamento jurídico brasileiro, o artigo 4º do antigo Decreto nº 80.145 de 15 de agosto de 1977, já revogado, definia contêiner como: “um recipiente construído de material resistente, destinado a propiciar o transporte de mercadorias com segurança, inviolabilidade e rapidez, dotado de dispositivo de segurança aduaneira e devendo atender às condições técnicas e de segurança previstas pela legislação nacional e pelas convenções internacionais ratificadas pelo Brasil”. Seu parágrafo 2º ainda requeria como caracteres dos contêineres a “resistência ao uso repetido”, “mobilidade”, “segurança”¸”fácil enchimento e esvaziamento”, “ter seu interior facilmente acessível à inspeção, sem lugares em que se possam ocultar mercadorias”. Blikkiersdorp: a Cidade de Lata A casa-contêiner da Cidade de Lata, na Cidade do Cabo, constitui um espaço privado expulso do público e ao mesmo tempo enformado por ele. Forma pura e vazia (de “fácil esvaziamento e preenchimento”), móvel, transparente, acessível, sem lugares de ocultação ou invisibilidade, resistente à repetição, a casa-contêiner interioriza no oikos e nas formas de vida de seu habitantes a imagem vazia e puramente formal das leis nas sociedades de controle. Dessa forma, poderíamos propor o contêiner da Cidade de Lata como o paradigma contemporâneo da vida privada, especialmente naquilo que, no oikos, repete, continua e interioriza a pólis. Assim como a forma pura da lei, que vige indefinidamente (resiste a seu uso repetido justamente por ser transparente, móvel, segura, fácil de encher e esvaziar), nossas casas e formas de vida nada mais são do que as continuidades formais interiorizadas de um aparato governamental que repete a fratura teológica entre ontologia e práxis ético-política. O oikos é, por definição, o exílio e a desaparição no interior da pólis; uma unidade econômico-social marcada originalmente por sua autarquia (“autos-arkhé”), hoje completamente subtraída por um poder governamental que vem de fora, territorializa o oikos topologicamente para além da cidade, cria conjuntos de oikos além dos portões, e o faz confundir-se com o campo de concentração, em que dentro e fora entram em uma zona de total indeterminação. Nela, oikos e pólis já não podem ser reciprocamente localizáveis. Os habitantes da Cidade de Lata constituem as figuras-quaisquer de refugiados interiores, renovando a atualidade de Hannah Arendt e de seu belo We refugees (“Nós, refugiados”). Seus rostos desesperados e vazios também permitem dar razão a Agamben em duas das teses centrais de Al di là dei diritti del’uomo: (1) a fim de colocar em xeque a inscrição do princípio de natividade e a trindade “Estado-Nação-Território”, o conceito-chave não seria mais o ius do cidadão, mas o refugium do indivíduo; (2) recuperada por Agamben desde O declínio do Estado-nação e o fim dos direitos do homem, de Arendt, a figura do refugiado, “aquele que consiste com o puro fato de ser humano”, marca a radical crise do conceito de homem sobre o qual os direitos humanos se articulam. A partida que nunca se encerra É claro que o jogo pode, e deve, ser encarado sob a perspectiva do “ludens” de Nietzsche, Huizinga ou Maffesoli; não devemos fechar os olhos ao potencial profanatório do jogo – tampouco Agamben o faz. O que Agamben faz, porém, é advertir sobre sua fácil captura pelos dispositivos governamentais. Em O que resta de Auschwitz, Agamben narra o relato de Miklos Nyiszli, um sobrevivente dos campos de concentração. Nyiszli contava que durante uma pausa no “trabalho”, pudera assistir a uma partida de futebol entre SS e representantes do Sonderkommand. Esse momento de aparente normalidade é o que, segundo Agamben, continua o terror no interior do normal; segundo ele, um dos mais urgentes desafios da filosofia política é tornar-se capaz de compreender e interromper essa partida. Ela, como a Copa do Mundo, não são senão as metáforas de uma normalidade cujo coração a exceção habita e rói. Simonova, as forças livres A continuidade essencial entre os habitantes de Blikkiersdorp e a arte performática de Simonova é aquela que nas figuras sem espessura dos refugiados permite compreender algo essencial à relação entre arte e política. Assim como Simonova desenha sobre um espaço limpo, usando gestos livres para enformar uma matéria informe (finos grãos de areia), seus desenhos desérticos, ao povoarem um espaço liso, tornam-se a expressão de que toda forma não passa de um arranjo de forças historicamente determinado – mesmo quando o vigor de suas mãos deixam passar, sob os signos da invasão ou da guerra, um pouco de caos ao interior do conjunto. As mãos de Simonova encarnam as forças livres do tempo (Crónos, Aiôn, Kairós); e o tempo, roedor das entranhas da história, mal um outro se materializou, já imagina um novo e expressivo arranjo. A imaterialidade radical dos signos da arte, que Deleuze apontava na frase musical de Venteuil, capaz de ressoar diretamente com a sensibilidade, com o tempo e com o espírito, dissolve, como o vigor dos gestos de Simonova, as formas atuais. O tempo altera os sentidos “em estado” e suscita as variações expressivas capazes de libertar as forças que agem sobre um plano de imanência. As formas de vida, como as formas que a areia adquire, variam como intensidades na orla do tempo, povoam os espaços lisos e os quadros de vidro. Por isso, não há forma ou violência pura que resistam às potências de um povo que ainda não existe. Arendt prenunciara os refugiados como “a vanguarda de seus povos”. A arte, porém, não os cria. A esse povo que ainda não existe, a arte só pode endereçar seu apelo, demonstrar o vazio das formas e figuras sem espessura e funcionar, como dizia Deleuze, como um relógio que, desestratificando, …adianta. @_mdcc Coluna mensal de Murilo Duarte Costa Corrêa Editor do blog de Filosofia e Teoria do Direito A Navalha de Dalí