Suscitar acontecimentos By Murilo Duarte Costa Corrêa / Share 0 Tweet Croquis de crânios de delinqüentes; pelo Dr, Vans Clarke, diretor de prisão. In: (LOMBROSO, 1895) “No dia em que o controle biométrico seja generalizado e em que a videovigilância seja instalada em todas as ruas, toda a crítica e toda a dissidência serão impossíveis”. (Giorgio Agamben, Não à biometria). 1 Kelsen afirmava em Teoria Geral do Direito e do Estado que, de um ponto de vista do dever estritamente jurídico, o sujeito destinatário da ordem jurídica não seria mais do que “um delinqüente em potencial”. A biometria dá a Hans Kelsen uma oportunidade para reencarnar nos sistemas burocrático-administrativos do direito positivo atual. Sob a égide dos Estados contemporâneos de Direito, com seus dispositivos de segurança e garantias tanto mais numerosos quanto mais ineficazes, falíveis, manipuláveis e, no entanto, incontornáveis, os corpos físicos dos cidadãos deixam de ser os corpos disciplinares para se tornarem o ponto de imputação privilegiado dos dispositivos de governamentalidade. 2 Não é de todo desprezível o fato de que, hoje, no Brasil, ninguém possa renovar a habilitação para conduzir automóveis sem antes passar por um cadastro biométrico, em que são escaneados os cinco dedos de cada uma das mãos. Dispensa-se até mesmo a assinatura pessoal do condutor, que só estampa as habilitações porque nelas parece ser necessário reservar um lugar para o sujeito daquele corpo. Também não se deve menosprezar o fato de que toda uma campanha publicitária realizada pelo Superior Tribunal Eleitoral destinou-se, até agora, a emitir signos que têm por exclusivo propósito identificar os significantes “biometria = segurança”, ou “biometria = transparência”, eleitorais. O Tribunal Superior Eleitoral, desde as primeiras experiências com as urnas biométricas ocorridas nas eleições municipais de 2008, condicionou expressamente por resolução o exercício do direito constitucional ao sufrágio ao recadastramento biométrico de todo eleitor com domicílio eleitoral nos municípios-sede em que ocorreriam os primeiros testes. Em 2010, não será diferente. O Tribunal Superior Eleitoral prevê que, até os anos de 2016 ou de 2018, todas as eleições brasileiras sejam realizadas com utilização da identificação biométrica dos eleitores. O slogan da implementação das urnas biométricas no Brasil (“cada vez mais, o poder está na mão do eleitor”) atesta a duplicidade da subjetivação-captura operada pelo dispositivo de controle: pretende-se garantir a segurança dos processos político-eleitorais ao efetuar-se uma identificação sem precedentes entre homem político e um corpo biológico que só pode ser o dele. As urnas biométricas são o dispositivo técnico que, contemporaneamente, permite entrever a identificação sem resíduos que o Estado promove entre corpo biológico dos homens e as prerrogativas políticas inerentes ao status de cidadania. A subjetivação cidadã e corpo biológico dos homens fazem um no corpo a corpo dos cidadãos com o dispositivo eleitoral biométrico. 3 Cesare Lombroso foi um dos mais célebres precursores daquilo que, anos depois, viria a ser nomeado “antropologia criminal”. Originalmente, a disciplina lombrosiana destinava-se a identificar, organizar e classificar os traços fenotípicos comuns à face e à compleição corpórea do “délinquant-né” (delinqüente nato). Em L’homme criminel. Étude anthropologique et psychiatrique (1895), croquis identificavam uma variada gama de elementos estruturais e de traços do criminoso natural, que iam desde o formato dos crânios até a dimensão de seu campo visual médio. Atualmente, quando a criminologia passa a compreender o crime como um fenômeno biopsicosocial complexo, valendo-se da bioantropologia, mas também da criminologia sociológica, já não se pode afirmar, com a falaciosa certeza lombrosiana, quais os caracteres constituintes dos “criminosos por natureza”. Diante desse saber-poder bem estabelecido, o Estado utiliza a biometria como aparato técnico e dispositivo que reduz o cidadão a uma identidade morfológica de raiz biológica. Desde Lombroso, os procedimentos biométricos não eram aplicados à totalidade dos cidadãos, mas apenas aos delinquentes. 4 Atualmente, segundo Giorgio Agamben, a extensão e a generalização dos dispositivos biométricos e sua universal presença em espaços públicos como escolas, aeroportos, departamentos burocráticos etc., importaria reconhecer que todo cidadão tornou-se, aos olhos do Estado, um criminoso, ou um terrorista, em potencial. A maior prova disso – atesta Agamben durante a apresentação de um dos livros de Tiqqun –, encontrar-se-ia no fato de que todo homem que não se sujeita, ou denuncia, a aplicação dos aparatos biométricos pelo Estado aos cidadãos, é tratado como terrorista. 5 Brevemente, em 03 de outubro de 2010, a maior parte dos brasileiros votará ainda nas urnas eletrônicas tradicionais. Pela primeira vez, no entanto, o eleitor deverá comparecer à seção com o título de eleitor e um documento com foto. Pequenos municípios brasileiros, desde as eleições municipais de 2008, vêm testando as urnas biométricas. Tal dispositivo de controle e segurança já sofre críticas que vão da violação da garantia ao sigilo da votação à ineficácia técnica da garantia contra fraudes. Ainda assim, o aparato biométrico é vendido pelo próprio TSE como uma das resultantes da “revolução digital”. 6 Ao identificar o sujeito político exclusivamente por meio de seu próprio corpo, a identificação biométrica traz à luz aquilo que, desde os gregos, é, segundo Giorgio Agamben, o princípio de inscrição da doçura natural da vida nua (biológica) no seio do político, ao mesmo tempo em que essa mesma vida – nua, natural – é excluída da política; desse processo, em nosso sistema representativo, resta sempre o eleitor: um sujeito vazio, mas “seguro” e, sobretudo, passível de controle e identificação no campo aberto e perigoso da política. Seu corpo biológico, que antes não compunha o cadastro eleitoral, é interiorizado, agora, pelo cadastro biométrico. Coextensivamente à identificação sem resíduos entre eleitor – sujeito político por excelência das democracias representativas – e corpo biológico individual dos cidadãos, produz-se a identificação entre cadastro eleitoral e cadastro biométrico. Assim, a biometria parece ser um passo adiante na concretização da clássica imagem da associação política hobbesiana: a imagem do Leviatã já não se faz unicamente de corpos, mas também de dados biométricos desmaterializados de cada cidadão, em nome dos quais nossos puros corpos subjetivados continuam sujeitados a uma política impotente, porque reduzida ao corpo a corpo entre homens e aparelhos de captura publicitário-eleitorais. @_mdcc Editor do blog A Navalha de Dalí