Suscitar acontecimentos By Murilo Duarte Costa Corrêa / Share 0 Tweet Coluna mensal de Murilo Duarte Costa Corrêa n’O Pensador Selvagem Editor do blog de Filosofia e Teoria do Direito A Navalha de Dalí 1. Se retornássemos ao período vitoriano, em meados do século XIX, veríamos, como Michel Foucault, o sexo elevado à condição de tema central das preocupações de uma cultura. Normalizar um aspecto da vida, seja ele a loucura, o crime, a doença mental ou a sexualidade, implica por em obra dispositivos culturais que se ocupam em produzir e em constituir em suas margens os próprios fenômenos da loucura, do crime, da doença mental e da sexualidade. Eis o que, em Foucault, dá sentido à tese de poderes constitutivos, fabris e não meramente repressores ou negativos. Por um lado, essas ocupações ocorrem no interior de um sistema de práticas bem-delimitado, chamado normal; ao mesmo tempo que se normaliza o sexo ou a loucura, em que eles dispõem de uma espécie de norma, cria-se, co-extensivamente, mais perversão e mais delírio, na medida em que a perversão e o delírio tornam-se operadores conceituais necessários ao sexo-norma ou ao modelo do razoável). O período vitoriano teria sido exemplar como prova disso: a maciça repressão sexual e ao corpo não apenas constituiu o sexo como um objeto digno de um campo de preocupações próprio, mas pôde conviver durante um longo período com pequenas efervescências perversas, que foram capturadas, mais tarde, pela própria medicina ao estabelecer o comportamento sexual cosidetto normal, mas também pela literatura de Sade e Sacher-Masoch, por exemplo. 2. Georges Battaille (1960, p. 71), em L’Erotisme, afirmara que “a transgressão suspende o interdito sem suprimí-lo”; indo além de Bataille, mas aproveitando a relação referencial entre o ato de transgressão e a afirmação dos conteúdos e da própria vigência da lei violada no seio dessa mesma transgressão, pode-se notar que a lei não se constitui sem constituir a possibilidade da transgressão. Assim como o sexo normal não pode ser constituído sem atrelar-se negativamente a uma série de perversões às quais parece negar vigência, tampouco o conceito de loucura pode estabelecer-se sem implicar uma certa dinâmica entre psiquismo normal e delirante. No seio do sexo-norma, como no da razão, constituem-se os conceitos de perversão e de delírio como seus limites negativos. O que não se pode dizer com certeza é até que ponto eles são exteriores ou interiores aos conceitos que constituem. Embora na filosofia de Foucault não se possa confundir Lei e norma, ambas possuem sempre um referente, uma espécie de exterioridade impura que capturam excluindo-a do âmbito de sua aplicação com a finalidade, aparentemente paradoxal, de constituir seu âmbito normal de incidência. Disso já podemos compreender o grande mal-estar de Giorgio Agamben ao arrostar um projeto político como o battailliano. A lei só se constitui supondo seu próprio bando – esse momento “excepcional”, mas ao mesmo tempo tão ordinário, em que se aplica desaplicando-se. Não é da condição normal da lei aplicar-se sobre a transgressão, mas como ela deixaria de aplicar-se se o ato de transgressão traz em si a marca simbólica daquilo que atravessa e constitui a lei em seus conteúdos cingidos por uma forma pura? Isso, entretanto, está muito longe de ser uma aporia. Ao contrário, constitui a própria dinâmica paradoxal que faz com que a norma encontre fundamento apenas na exceção. 3. Se o período vitoriano ocupava-se do sexo, mas apenas como quem se ocupa de um segredinho nojento, hoje não deixamos de ocupar-nos com ele; nem tão secreto, nem tão nojento. Fala-se, mesmo, em uma espécie de retorno do dionisíaco e do orgiástico que, ao que parece, faz-se de maneira intensamente liberadora; contudo, em seu fundo, ainda podemos encontrar a sexualidade como um dos terrenos par excellence em que se revela o corpo a corpo entre homens e dispositivos. O dispositivo da sexualidade, dentre outros dispositivos que anexamos a ele, produz correntes de subjetivação (fabricam sujeitos) ou de dessubjetivação (desconstituem, ou dissolvem, sujeitos). Gostaria de citar alguns exemplos. É comum ouvirmos que vivemos uma espécie de retorno do culto ao corpo; jovens são capazes de passar horas enfurnados nas academias; idosos fazem musculação diariamente porque assim acreditam evitar os males da osteoporose, ou ganhar sobrevida – mesmo que não saibam exatamente muito bem para quê. Contudo, isso parece ir na contramão de tudo o que diz respeito a um retorno de culto ao corpo e aos prazeres, a um hedonismo eudemonista. Já não cultuamos o corpo como puro meio, como um suporte físico a ser consumido pela vida compreendida como experiência. Tampouco somos capazes de ver no corpo um servo fiel do gozo; hoje, cultuamos o corpo como pura forma. O bodybuilding constitui o paradigma e o programa de nossa atual relação com o corpo: severas restrições alimentares, dieta, exercícios permanentes, ocupações infinitesimais, não com o corpo, mas para dar forma a ele. O corpo é apenas o suporte material sobre o qual se aplica uma pura forma. O corpo natural é feio, vadio, informe; algo a ser modificado, remodelado como artefato. Assim como os primeiros homens teriam modificado o estatuto da natureza, o corpo constitui a mais íntima natureza a ser enformada pela ação humana. Quando o corpo passa a ser pura forma, como no caso do fisiculturismo – que há muito não é um território exclusivamente masculino – é sinal de que algo mudou nas relações entre nossos corpos e os dispositivos. A própria lei, que antes vigia como pura forma, que regrava e circunscrevia um âmbito próprio aos prazeres, passa a inscrever-se sobre o próprio corpo, a enunciar na forma que um corpo deve apresentar, toda a norma aplicável aos corpos dos homens. 4. O dispositivo da sexualidade também parece, algumas vezes, ter sido assaltado por uma pura forma. A pornografia sempre fora um dispositivo que subtrai a própria experiência do ato sexual. Não por acaso Laurent de Sutter falou recentemente a respeito da pornografia como uma metafísica do sexo, algo que não pertence à ordem da sexualidade concreta, mas àquela da “rêverie abstraite”. Também recentemente, Gilles Lipovetsky pôde compreender nisso um exemplar do fenômeno da hiper-sexualidade: a convivência paradoxal entre infinitas possibilidades de rapports sexuais irreais, impessoais e ilimitados via internet (as jovens com suas webcams, as moças, célebres ou anônimas, que já não dividem suas camas apenas com os namorados, mas também com as filmadoras, câmeras fotográficas e gadgets de todo o tipo), contrasta com a decepção recorrente em atribuir-se um comportamento sexual efetivo apenas modesto e bem-comportado. 5. Agamben já falou do momento em que a pornostar olha fixamente na direção da câmera e, indiferente a seu partner, já não simula o prazer, mas adquire um semblante inexpressivo; o rosto angelical de Chloë des Lysses permanece indiferente ao parceiro e, a um só tempo, igualmente indiferente a toda a partilha de olhares com os espectadores. A pornostar vaza no próprio rosto um olhar fixo e vazio, realiza uma troca impossível com a câmara escura da filmadora. Seu rosto inexpressivo “rompe toda relação entre o vivido e a esfera expressiva”; torna-se, segundo Agamben, um puro meio, e engendra um potencial profanatório que o dispositivo da pornografia visa a neutralizar. “O consumo solitário e desesperado da imagem pornográfica acaba substituindo a promessa de um novo uso”, e assim o dispositivo pornográfico subjetiva o consumidor ao mesmo tempo em que o captura na distração de uma intenção propriamente profanatória (Agamben: 2007, p. 78). O vazio do olhar de Chloë des Lysses engendra uma desarticulação entre a experiência e a expressão, entre a sensação demasiadamente atual, percutida no corpo, e um “semblante impassível”. Não é isso que Agamben contesta. Essa desarticulação indica a possibilidade de um novo uso do sexo a partir da intenção profanatória que radica na pornografia, e que não se confunde com uma simples perversão, na medida em que seria capaz de desarticular a própria relação de exceptio que mantém com a lei. Não se trata do que faz Chloë des Lysses, das obscenidades ou das sevícias que um corpo delgado suporta, mas persiste um campo de indiferença entre sensação e expressão, experiência e uso imediato do sexo: isto é, o potencial profanatório da pornografia estaria em liberar o sexo como puro meio benjaminiano, como meio sem-fim. Porém, quando o dispositivo pornográfico prescreve um uso com incidência no campo da normalidade (o consumo solitário, distraindo-nos da intenção de estabelecer um novo uso, capturando nossa atenção), o que se faz é substituir aquilo que constitui a própria experiência: a faculdade de fazer um uso livre de um objeto separado em uma esfera própria, divina, intocável pelos homens. 6. Não precisaríamos ir além do corpo, do sexo ou da pornografia para descobrir o potencial profanatório dessa desarticulação entre experiência e máquina de expressão e rostificação. Ela se apresenta em situações até mesmo mais derrisórias, como no turismo. Nele, fica patente a substituição da experiência da visão, do corpo, do prazer de ver e tocar, por uma espécie de gozo de prótese proporcionado pelas filmadoras e máquinas fotográficas digitais. Esse consumo imediato também está presente na pornografia; é o caso do “first-person shoot view” do pornô amateur. O consumidor solitário distrai-se com a visão em primeira pessoa de um partner completamente alheio à própria experiência que suas objetivas registram. O que entra em jogo nessa normalização da experiência é o conceito de museificação do mundo, como aquilo que designa uma radical impossibilidade de uso. Um turista veneziano experimenta uma verdadeira exposição da impossibilidade do uso capturando imagens de Veneza com suas objetivas. Não se pode tocar na história, ela se tornou um objeto fora de alcance e fora de uso. O quotidiano dos homens constrói-se neste infinito corpo a corpo travado com os dispositivos de captura. Mesmo os elementos mais derrisórios como o turismo, a escrita, a caneta, a linguagem, os telefones celulares, os microblogs, e até mesmo a forma-homem podem ser descritos como dispositivos atualmente em obra em nossa cultura. Em sua operação, encontramos a distração dos sujeitos, sob a forma organizada de sua própria subjetivação-dessubjetivação, a captura de “desejos demasiadamente humanos de felicidade”, que são separados de sua potência e intenção propriamente profanatórias. Subtrações infinitesimais atingem-nos corpos, sexos e interditam-nos a própria experiência. Por isso, Agamben diz que a tarefa de uma política que vem é, precisamente, desfazer essa interdição, recuperar a experiência, “profanar o improfanável”; mas para isso, nada é mais urgente que desarmar os dispositivos.