Um outro mundo é possível By Dirlene Marques / Share 0 Tweet A geração hoje acima dos 50 anos viveu e atuou em momentos fundamentais da história do Brasil. E, como diz Marx: “os seres humanos fazem a história, mas a fazem em determinadas circunstâncias”. Busco entender estas circunstâncias para entender a situação atual, quando companheiras e companheiros desta época estão cada vez mais envolvidos com a “administração do capitalismo”, alguns satisfeitos, outros nem tanto, mas sem disposição para a luta. Do dia 31 de março de 1964 até os dias de hoje se passaram 44 anos. Uma tragédia que precisamos recordar para impedir que se repita, mesmo enquanto farsa. Uma tragédia que marcou toda uma geração. As lembranças são muitas: das lutas, da violência da repressão, da eliminação física de uma juventude e de todos que lutavam por um mundo melhor. Do outro lado, a ausência da maioria do povo envolvido com o futebol e com o milagre econômico. Estas são as lembranças mais fortes. A Violência do Estado Alguns livros de história, alguns filmes e romances mostram que a tortura no Brasil tem origem antiga, desde os escravos africanos. Sabemos dos horrores praticados contra este povo, que era mutilado por qualquer motivo, castrado ou usado como animais reprodutores, sendo as escravas violentadas seguidamente e mutiladas quando não se submetiam. Povos nunca foram tão torturados e violentados e os senhores não faziam isto diretamente, mas através de seus capitães de mato e da policia. Sabemos como esta mesma prática permaneceu para continuar punindo os pobres e aqueles que lutavam contra estes desmandos. Sabemos de todas as histórias de torturas, prisões e expulsão dos trabalhadores anarquistas que nos anos 20 buscavam se organizar para defender seus direitos. Na ditadura Vargas, este processo permanece tendo no delegado Felinto Muller, a figura mais temida da época. Entregar Olga Prestes, grávida, para os nazistas foi uma pequena mostra do que se fazia. Nos anos 60 e 70 estas formas serão aperfeiçoadas, tendo até consultores dos EUA para ensinar métodos de tortura. Este período também se diferencia pelo envolvimento de militares e por ter sido não só contra os pobres, mas também contra a classe média que assumiu o lado dos trabalhadores. Foi uma política de estado para extrair informações com rapidez. Vale lembrarmos de alguns lutadores assassinados: Marighela e Lamarca, José Carlos da Mata Machado, Gildo Lacerda e o grande martírio de 104 dias do Bacuri, que teve seus olhos perfurados, língua arrancada, unhas extraídas, dedos e ossos quebrados. O aparato repressivo criado para combater a guerrilha propiciava a seus integrantes uma situação privilegiadíssima. Não só recebiam dos empresários vultuosas recompensas pelo revolucionário preso ou morto, como se apossavam de tudo que encontravam de valor com os militantes. Era o pacto entre o estado, como aparelho repressivo, e as elites dominantes que continuava atuando, como diz Lungaretti. Hoje é quase unanimidade nacional a condenação e rejeição da ditadura e das torturas. Não se fala dos políticos e empresários que apoiaram e financiaram todo o processo. Não se fala dos torturadores e do aparato montado pelo estado para torturar. Não se fala da tecnocracia que, como cargo de confiança, servia à ditadura. E a amarga recordação das Marchas da Família com Deus e pela Liberdade, que chegaram a mobilizar milhões de pessoas em todo o país, garantido a base social relativamente sólida para o Golpe Militar. A grande imprensa, como o Jornal do Brasil, os Diários Associados, o Estadão e O Globo cumpriram o seu papel de representantes das elites e aplaudiram e divulgaram “o grande movimento popular para destruir o perigo vermelho”, os comunistas. Era o medo das elites de que o povo pudesse ter vez e voz. Anistia Recíproca Foi o medo da reação do povo que, em 1979, após vários anos de luta pela Anistia Ampla, Geral e Irrestrita, o governo militar decreta a Anistia Recíproca. Apesar de o movimento da anistia ter denunciado este decreto, não teve forcas para revogá-lo. De um lado, a luta armada tinha sido dizimada e o movimento sindical, que retomava seu papel, tinha o limite nas suas reivindicações. Do outro lado, a volta dos exilados e a libertação dos presos políticos vai ter por parte da imprensa, uma ampla campanha pela de reconciliação, pelo esquecimento. Apela-se para a índole pacífica do povo brasileiro, que de acordo com as elites, quer paz (a paz para as elites e a “paz dos cemitérios” para o povo trabalhador). A campanha pelo esquecimento tem um significado mais amplo: esquecer os assassinatos e torturas, mas, especialmente, a razão pela qual eles lutavam. Isto é, se não tinha vítima, não tinham responsáveis e não tinha a razão da luta. Faz-se, assim, a reconciliação nacional. Todos passam a ser grandes democratas, tal como “o companheiro” Delfim Neto – servidor de todos os governos da ditadura, tal como Antônio Carlos Magalhães e outros. E os revolucionários dos anos anteriores? Deixam de ser tratados como perigo vermelho, que deveriam ser mortos e passam a serem vistos como vítimas de um sistema anônimo, cruel e insano. Algumas vezes, ainda encontramos outras análises, onde os papéis se invertem e os torturados passam a ser os responsáveis por desencadear a violência: se o estado prendeu, torturou e matou foi para se defender. É assim que o fim da ditadura não toca no aparato repressivo e nem nas estruturas do poder e da renda que permanecem e são ampliadas nos anos 90. Hoje, vivemos em um país com a pior distribuição de renda do mundo, com um uma exclusão social inaceitável e uma violência que permeia toda a sociedade. E a tortura continua sendo usada nas delegacias e nas prisões por todo o Brasil como método de investigação e de castigo, em especial contra os negros-pobres e contra os pobres em geral. A prisão arbitrária, o inquérito e o interrogatório violentos, a polícia nas vilas e favelas com seus caveirões, matando indiscriminadamente, arrebentando as portas, entrando sem mandado, espancando… são práticas corriqueiras. Luta dos anos 60, revolucionários em extinção Nos anos 60, havia uma compreensão na esquerda de que a superação da pobreza, da dependência e a redução da violência, só seria possível com uma sociedade socialista. Ainda mais no caso do Brasil, submetido à super exploração e ao super lucro, paraísos para o grande capital. E assim, lutávamos contra a corrente e denunciávamos o milagre econômico que levou o Brasil a enormes taxas de crescimento, reduzindo o desemprego, aumentando a massa salarial, e que, na lógica do capitalismo periférico, concentrava a renda. Denunciávamos o modelo por não fazer as reformas até como uma necessidade do capitalismo para melhorar as condições de vida do povo brasileiro. Denunciávamos a violência da repressão que torturava, matava, violentava todos os que lhe opunham. E éramos ousados em nossos objetivos: queríamos uma sociedade com democracia econômica, social e política. Queríamos o socialismo. Este era o nosso grande consenso. Para viabilizar este objetivo, foram duas as vertentes dos movimentos: de uma parte, a guerrilha e a luta na clandestinidade; e, outra parte, permanece procurando reorganizar o movimento que estava sendo todo destroçado pela repressão. Lentamente, o movimento vai se reorganizando e novas formas de organização vão surgindo. É assim que ressurge o movimento sindical e estudantil. Novos movimentos como a Anistia Ampla Geral e Irrestrita ganha as ruas nos anos 70. A luta por uma Constituinte soberana e democrática amplia o apoio nos anos 80. E, neste processo de mobilização crescente, se constrói um partido amplamente democrático, claramente identificado com as lutas e reivindicações dos trabalhadores. Da mesma forma que entregamos nossas vidas na luta contra a ditadura, passamos agora a entregá-la na construção do instrumento para revolucionar as estruturas de nosso país: O Partido dos Trabalhadores. Partido que galvaniza e ganha o apoio da sociedade e elege o presidente da República. E a mudança tão esperada não ocorre. O PT se ajusta e pragmaticamente passa a assumir o modelo macroeconômico dos anos 90. Para amenizar estas contradições, segue o já famoso Lampidusa, ou para ser mais atual, a orientação do Consenso de Washington II: dar os anéis para não perder os dedos. O estado passa a ser o grande supridor, distribuindo salário família, tirando os miseráveis da pobreza absoluta e tornando-os eternos dependentes do governo. E a sociedade da bolsa família e da bolsa de valores, mas com o discurso da sociedade justa, fraterna e igualitária, sabendo que no capitalismo isto é impossível. E os revolucionários dos anos 60 parecem em vias de extinção. Na melhor das hipóteses são hoje democratas. A maioria está institucionalizada e envolvida pelas prioridades definidas pelas elites capitalistas: crescimento, controle dos juros, abertura, superávit primário, grandes obras destruindo o meio ambiente e, distribuição da bolsa família. Mas, a historia não para. Novos atores e movimentos sociais estão surgindo e transformarão este pais, fazendo dele um pais melhor para se viver onde a violência, a exploração e a discriminação apenas façam parte de nossa historia. Em texto editorial do dia 2 de abril de 1964, o "Globo" assinalou: – Vive a Nação dias gloriosos. Porque souberam unir-se todos os patriotas (…) para salvar o que é essencial: a democracia, a lei e a ordem. Graças à decisão e ao heroísmo das Forças Armadas (…), o Brasil livrou-se do Governo irresponsável, que insistia em arrastá-lo para rumos contrários à sua vocação e tradições. (…) Poderemos, desde hoje, encarar o futuro confiantemente (…) Salvos da comunização que celeremente se preparava, os brasileiros devem agradecer aos bravos militares, que os protegeram de seus inimigos. (…) Aliaram-se os mais ilustres líderes políticos, os mais respeitados governadores, com o mesmo intuito redentor que animou as Forças Armadas. Era a sorte da democracia no Brasil que estava em jogo.(…) A esses líderes civis devemos, igualmente, externar a gratidão de nosso povo.(…) Se os banidos, para intrigarem os brasileiros com seus líderes e com os chefes militares afirmarem o contrário, estarão mentindo, estarão, como sempre, procurando engodar as massas trabalhadoras, que não lhes devem dar ouvidos (…). Dirlene Marques Comitê Mineiro do Fórum Social Mundial