A imagem de nós mesmos (III)

Cageças de cangaceiros decepadas

Que imagem pode nos definir enquanto processo civilizatório?

A imagem da degola.

Literal ou figurativamente, cortam-se cabeças no Brasil. É nossa imagem mais constante.

O Estado, quando chega, decepa a cabeça do cidadão. Corta sua cabeça, sua mente, seu espírito, seu cérebro. É sua missão primordial. Corte-se a cabeça antes que ela pense.

Despreza-se a produção do intelecto. Faz-se pouco do pensamento. É nosso legado, é o que transmitimos aos nossos filhos: odeie o pensamento; mais útil é ir para a academia aprender jiu-jitsu.

Impressiona-me na atuação do Estado em fenômenos como Canudos, o Contestado, a Revolução Federalista, o período da ditadura militar, na guerrilha do Araguaia, entre outros casos tantos, a sua ferocidade desproporcional. E também sua ausência. Atrasado, o Estado chega, dispõe a tropa e atira. E então corta as cabeças.

Ausência sistemática daquilo o que é distante, do que não representa seus interesses que são interesses privados da casta que o maneia. Ele próprio, o Estado, é tomado de surpresa quando eclodem acontecimentos como Canudos. Não sabe o que se passa, não tem informações precisas sobre os acontecimentos que se dão à sua margem, exacerba sua reação como um corpo doente reagindo ensandecido a uma espetadinha de nada na ponta do dedo. E atua apenas de uma forma: manda a repressão, manda o choque, batendo seus cassetetes nos escudos feito falange macedônica. Manda o Bope, manda o Capitão Nascimento. E eles atuam com a ferocidade dos capitães do mato que fazem o serviço sujo do senhor da casa-grande. Melhor não pensar, melhor agir.

Não é o que ocorre ainda hoje nas favelas, nas periferias, nos cús do Judas, onde o estado só põe os pés (ou as botas) para tocar o terror? Cerca-se a Rocinha — claro, ela fica muito próxima da casa-grande — perturba-se a vida do cidadão honesto, apreende-se um ou outro fuzil, gera-se alguma mídia, e vai-se embora, e tudo continua como antes.

Não está lá para a segurança, não está lá para a escola, saúde, cidadania e garantir a possibilidade de vida decente. Que são, não esqueçamos, suas obrigações.

Quando chega, é com o Caveirão, é para o Capitão Nascimento cortar a cabeça dos usuais 3 pês e mandar para o coronel de plantão

Para servir de exemplo.

Porque o Estado nos trata como boi. Como gado de corte: servimos para fornecer carne barata.

Essas reflexões sombrias nascem de certa tristeza ao se observar o panorama político brasileiro contemporâneo. O retrocesso político, cultural, civilizacional é evidente. Difícil é olhar para executivo, legislativo e judiciário e não ver seu semblante reacionário. Reação dos poderes vigentes pela manutenção do status quo, para estancar a sangria, nas imortais palavras do eterno e imperecível Romero Jucá. É difícil olhar para a figura do senhor desonrado que tomou de assalto a presidência e notar a desenvoltura com que ele impõe uma agenda medieval sem ter recebido um mísero, único e escasso voto, claro que atendendo às demandas de um legislativo igualmente regressivo e fisiológico, e claro que atendido por um judiciário que age feito divindade do Olimpo: caprichoso, intocável, arrogante, favorecendo seus escolhidos.

Nossa imagem nacional?

Degoladores.

Coloquemos uma placa de aviso no mapa desta civilização deitada eternamente em berço esplêndido: “Cuidado, aqui, cortamos as cabeças”.

About the author

Marcos Schmidt

Marcos Schmidt é designer gráfico e ilustrador. Vive e trabalha na irremediável cidade de São Paulo.