Buracos na luz

De maneira brusca, posso afirmar: sombra é a ausência de luz. Uma definição negativa, no entanto. Definir sombra como área escura é ainda pior. A mesma área escura pode ser a zona mais iluminada noutro contexto. Um homem do século XVIII definiu sombra como “buracos na luz”.

Pintores do renascimento evitavam a sombra. Suas telas, regidas por princípios de centralidade e unicidade, coerentemente faziam uso da chamada “luz universal”, iluminação homogênea, que minimiza a sombra e ilumina tudo por igual. Não há lugar para ela, a sombra, no pensamento renascentista. E a pintura no Renascimento é a reificação desse pensamento. Ali, na superfície plana, a filosofia do homem renascido das trevas, renascido das sombras, é transformada em ato. É um modesto fiat lux humano.

Caravaggio, sujeito bruto, deixará tudo mais complicado. Arrogante como era, feito o Altíssimo separará a luz das trevas: amontoará estas de um lado e a outra concentrará numa área minúscula. O resultado é drama. Intenso, carregado de emoções fortes, repulsivo para muitos. Sua mensagem é clara: há mais sombras do que luzes na natureza, e o homem faz parte dela.

Posteriormente, os pintores tornarão a sombra mais sutil, nuançada. Usarão a temperatura: luz quente, sombra fria. Luz fria, sombra quente. Farão as sombras coloridas, no impressionismo e daí por diante.

Precisamos das sombras para compreender o que vemos. Construímos o mundo contando e medindo as sombras. Leia-se Oliver Sacks para se saber da imensa dificuldade que há no ato de ver, algo que nos parece tão natural e automático como respirar, e que no entanto não é.

Dizemos: Fulano é bom, mas tem um lado sombrio. É uma frase completamente torta e capenga, das que não param em pé.

Podemos deixa-la interessante. Invertamos a primeira afirmação, mas não a segunda: Fulano é mau, mas tem um lado sombrio. É uma aparente contradição: se o sujeito é mau, ele é todo sombras. Mas se assim fosse, não haveria contraste para conhecer e diferenciar aquilo o que é mau daquilo o que é bom. A frase não seria contraditória, ela simplesmente não faria sentido. No entanto, e se déssemos uma outra volta no parafuso e tomássemos as palavras pelo valor de face? Fulano é mau, mas tem um lado sombrio significaria que seu lado sombrio seria alguma espécie de bondade. E que o lado iluminado, o lado do senso comum, da normalidade, seria o habitat da maldade absoluta. Habitualmente, seríamos maus, naturalmente maus. Nosso lado obscuro, a morada da nossa bondade.

Moisés não pode ver a face de Deus. Seria fulminado se o fizesse. E não é o próprio Deus que, numa aposta algo vaidosa com o Diabo, inflige as mais terríveis desgraças no corpo e na vida do pobre Jó? E não chamamos Lúcifer de “o portador da luz”?

Somos iluminados e somos sombrios. Todo o tempo.

About the author

Marcos Schmidt

Marcos Schmidt é designer gráfico e ilustrador. Vive e trabalha na irremediável cidade de São Paulo.