Ronda Noturna 2.0 By Marcos Schmidt / Share 0 Tweet Pensava-se que H. P. Lovecraft fora uma espécie de ermitão, que vivia isolado e que, com uma única exceção, jamais saíra de Providence, sua cidade natal. Hoje, sabemos que isso passa longe dos fatos: Lovecraft viajou muito, por todo o país, e quase foi à Cuba em certa ocasião, abortando a viagem pela necessidade de ser extremamente econômico, em função da sua pobreza crônica. E possuía uma enorme rede de contatos, que criou no curioso e intenso circuito de escritores amadores dos Estados Unidos. Legou um dos maiores acervos de cartas já vistos: sobrevivem mais de setenta mil delas. Além de contos, escreveu ensaios e poesia. Seu ensaio “O horror sobrenatural na literatura”, publicado postumamente, tornou-se referência entre os aficionados. Sua poesia, entretanto, é uma das coisas mais horrendas já perpetradas por um escritor. Nela, amplificam-se todos os defeitos que vemos na sua obra. Tão ruim era que, numa carta escrita no final da sua vida, ele faz uma espécie de mea culpa e esculacha com a falta de méritos dos seus poemas georgianos. Aliás, no quesito autocrítica, deve-se dar crédito a ele: considerava sua obra medíocre, adequada aos veículos em que era publicada. Não há dúvida de que consideraria espantoso o destino e a fortuna crítica de seus contos, de sua “mitologia”, e da própria biografia. Lovecraft é um autor de quem se faz uso. Não apenas no sentido literal, já que dezenas de autores continuaram, e continuam, fazendo uso de sua “mitologia”. Tanto sua obra quanto sua biografia servem para uma miríade de abordagens, tão estrambólicas quanto as monstruosidades que criou. Nisso, é decididamente um autor pós-moderno. Não a sua obra em si, mas sua obra quando relacionada a ele mesmo, e com seus leitores. É um hub, um ponto nodal, um cruzamento de linhas. Serve como uma luva no universo pop: é referência para outros contos de outros autores, que cultivam, cultuam e expandem a chamada mitologia de Cthulhu. É referência na música pop, em seriados de televisão, em jogos eletrônicos, jogos de tabuleiro (que eu nem sabia que ainda eram produzidos), RPGs, HQs, bonequinhos, e até mesmo em almofadas, blusas de lã, roupa de cama, toalhas de mesa, um blend de chás e um licor esverdeado. O livro que inventou em seus contos, o Necronomicon, adquiriu o status de lenda urbana. Há diversas versões dele espalhadas pela internet, e há quem defenda ferozmente a sua autenticidade. Certamente, o indivíduo Lovecraft tinha muito medo. Tudo o que fosse diferente do mundo, das pessoas, dos hábitos da sua Providence, tudo causava-lhe medo. Odiou Nova Iorque quando lá morou, por dois anos, no período em que foi casado com Sonia H. Greene, uma mulher em tudo diferente dele, e muito à frente de seu tempo, diga-se de passagem. Em nada semelhante a Providence, ela, a metrópole, lhe causava repulsa. É digno de nota que, apesar da ojeriza que sentia por Nova Iorque, conheceu-a bastante bem em suas caminhadas que duravam a noite toda. Amigos contam que temiam serem convidados para alguma dessas caminhadas, extenuantes ao extremo e perigosas, já que ele costumava aventurar-se por bairros dominados por gangues sem nenhuma consideração pelo fato. Não deixa de ser uma ironia: o sujeito aterrorizado com a “mixórdia racial” da cidade cosmopolita tornava-se indiferente à qualquer coisa em seus passeios “de natureza arqueológica”, como costumava descrevê-los. Não via os humanos, nem aqueles que lhe causavam repulsa (todos que não fossem caucasianos). Via apenas as coisas marcadas pelo tempo. Nisso, parecia muito com seus narradores meio lesados da cabeça. Talvez tenha aprendido a apreciar a sensação do medo. Transmutá-lo em outra coisa que não a realidade que experimentava. Transformar a banalidade de seu cotidiano em delírios cósmicos de escala inumana, nos quais não passamos de uma nota de rodapé. Uma curiosa forma de estoicismo, essa. Juvenil, por certo. E talvez por isso mesmo tão afinada com o nosso tempo. (continua)