Ronda Noturna 2.0 By Marcos Schmidt / Share 0 Tweet Borges, num ensaio, cita a dificuldade que estudiosos encontrarão num futuro distante ao se depararem com uma frase simples do tipo “essa criança chora todo santo dia”. Imaginarão que a criança, precoce, já era dotada de profunda religiosidade e que chorava de maneira ritualizada em dias tido como sagrados. Um conto de Arthur C. Clarke aborda um problema semelhante: seres de uma civilização avançada visitam um planeta no qual existira uma civilização que desapareceu e recolhem alguns objetos que encontram para estudá-los. Discutem especialmente o conteúdo de um artefato encontrado que aprenderam como usar, e que se assemelha a um projetor de filmes. Espantam-se com as formas de vida distintas e estranhas que existiam ali, tentam compreender suas atividades crípticas, e ficam intrigados com os estranhos caracteres que surgem ao final da projeção e que provavelmente consumirá anos de esforços até serem decifrados: a Walt Disney production. Só aí percebemos que os alienígenas haviam chegado ao planeta Terra pós-vida, e quebravam a cabeça tentando decifrar um desenho animado estrelado pelo Mickey, Pluto, Pateta e mais alguns outros. Nossa leitura dos artefatos do passado é sempre precária. Tome-se uma pintura de Hieronymus Bosch como exemplo. Gastamos toneladas de papel para tentar explicar os signos espalhados pela superfície da sua obra, e ainda assim boa parte dela permanece misteriosa. Bosch já foi chamado de satanista, alquimista, ocultista e esotérico, entre outras coisas. Claro que esses epítetos pouco elogiosos são fruto de leituras ruins e enviesadas dos séculos XIX e XX. Pesquisadores e historiadores mais recentes demonstram que Bosch utilizava elementos típicos da cultura do seu tempo, tanto erudita quanto popular. Muitas de suas criações mais fantásticas são imagens que ilustram ditados populares, trocadilhos espirituosos, ou são alegorias sofisticadas de uma cultura elitista e sectária, que se desenvolvia nas guildas e ordens religiosas de leigos. Seriam, portanto, muito menos misteriosas para seu público e para a sua época do que são hoje. Textos do Novo Testamento estão cheios desse tipo de equívoco. Jesus entra em Jerusalém montado num jumento e com ele um jumentinho porque o autor do evangelho de Mateus, ao citar Zacarias 9:9, desconhecia uma estrutura poética judaica, em que um verso é repetido, mudando-se ligeiramente as palavras. Tradutor, traidor – reza o ditado cruel. Mas o que seria do mundo sem o mal-entendido? O motor secreto da civilização é o mal-entendido, é o efeito colateral que não foi previsto. Lutero quer que a Igreja tome tenência, não muito mais do que isso. Ao traduzir a Bíblia para o alemão, ele dá início a uma revolução sem paralelos: alarga os limites da língua, estimula a leitura pessoal, torna os intermediários obsoletos, enfraquece a Autoridade que se supõe sagrada. Revolução francesa e revolução russa são fichinha perto do que foi (e de certa forma ainda é) a Reforma. Baudelaire já avisava: o mundo só caminha graças ao mal-entendido.