Ronda Noturna 2.0 By Marcos Schmidt / Share 0 Tweet Um tataraneto, ou algo assim, de Richard Wagner decidiu escrever um livro para limpar o nome do compositor. Não funcionou. O livro ele escreveu, limpar o nome do parente é que foi impossível. Wagner era anti-semita e, de acordo com alguns contemporâneos, acima de tudo um mau-caráter. Já sua música, é outra história. Devemos analisá-la tendo o homem em vista? Questão fumegante, essa. A avalanche de denúncias que tem atingido produtores, diretores e atores de Hollywood, bem como alguns similares tupiniquins, é avassaladora e parece ser apenas o começo. O macho-alfa do mundo do entretenimento está definitivamente lascado… Um ator de primeiro escalão é denunciado por assédio. Acabou de participar de um filme que está prestes a ser lançado. Prejuízo na certa, intui a produtora. Realiza-se, portanto, uma operação de guerra para salvar a película: gasta-se uma montanha de dinheiro para refilmar as cenas em que o ator denunciado participava, substituindo-o por outro. Às vezes, é possível. Noutras, a obra vai para o limbo, e lá ficará por tempo indeterminado. Confesso que eu mesmo tenho dificuldade de aceitar o trabalho de alguém que, no meu juízo, tenha pisado feio na bola. Misturo a biografia com a obra, e rejeito a ambos. Há certo indivíduo de uma certa banda que, numa história nebulosa, assassinou o membro de uma outra banda. Vou me eximir de dar os nomes. O sujeito assassino em questão, pode-se constatar numa série de textos que escreveu tentando justificar seu ato, é manipulador, mentiroso, covarde, racista e anti-semita. A coisa é recente, aconteceu nos anos 90s. Sou incapaz de ouvir a sua música. Não consigo separar a obra do autor. No (mesquinho) tribunal da minha mente, estão ambos condenados, sem remissão. Na mesma trilha pessoal, admito que um dos meus compositores de música antiga favoritos é Carlo Gesualdo (1566 – 1613). Na minha enorme ignorância, eu, que não conhecia nada da biografia do sujeito, achava que ele era padre ou coisa semelhante, alguém que cuidava essencialmente das coisas do espírito. Qual não foi minha surpresa ao saber que Gesualdo era um príncipe (Príncipe de Venosa) que assassinou a mulher e o amante dela de maneira cruel e sádica (há a lenda que conta que ele também matou o filho pequeno, desconfiado de que não era o pai). Fiquei surpreso, mas saber disso não modificou em nada minha opinião sobre sua obra. Continuo gostando do mesmo jeito. Por que a contradição? Por causa do tempo. Gesualdo está suficientemente afastado no tempo para que suas circunstâncias não me digam respeito. Leio sua biografia como leio História. E quanto mais recuar no tempo, menos importarão os atos dos indivíduos. Caravaggio, que era valentão e não levava desaforo para casa, matou um sujeito. E daí? Giotto era agiota. Isso importa, hoje, passados 700 anos? Shakespeare não tinha muito apreço pela democracia. Cícero, um dos homens mais ricos da sua época, passava boa parte do seu tempo em negociações inconfessáveis: vivesse hoje seria do PMDB e faria parte do governo Temer, ainda que o considerasse vulgar. Isso importa, 2000 anos depois? E François Villon? Isso para não falar de Jesus Cristo, pois, de acordo com a visão dos historiadores mais sérios que pesquisam o assunto, ele, caso vivesse hoje, seria chamado pelos católicos e evangélicos de esquerdista, black bloc e baderneiro, quando não de terrorista… Não pretendo me fazer defensor de nada nem de ninguém, e muito menos de acusador, que não sou advogado nem juiz. Só postulo que, com tempo suficiente, esquecemos completamente os indivíduos e as circunstâncias. Fica a obra, se tanto. Tempus edax rerum.