Ronda Noturna 2.0 By Marcos Schmidt / Share 0 Tweet A vida histórica opõe-se à vida mágica. Lemos e escrevemos – duas atividades que não caminham juntas necessariamente – e isso nos insere na história. Nestes termos, história opõe-se ao mito, à fábula, à fantasia. A vida histórica não deixa de cobrar seu preço em imaginação. O texto, sendo ele mesmo uma operação mágica, termina com o mundo mágico. Vilém Flusser escreve que o texto desmagicia a imagem, essa persuasiva abstração. A palavra escrita registra a memória, dá forma a ela, determina seus limites e esses limites delineiam seu contorno. Definidos, os limites desenham a história. Antes do texto, no entanto, houve a imagem: um animal talhado num osso, um animal rabiscado na parede de uma caverna. Uma operação na qual, ainda segundo Flusser, um evento é transformado em cena. Mais uma vez, uma operação mágica: uma ou duas dimensões são abstraídas numa transcodificação. Na imagem, na cena, o tempo é circular: os olhos vagueiam pelos traços e pelas cores, vão e voltam sem início ou fim. Ocorre que esta imagem, esta cena, que funcionam como mediadores entre nós e o real, acabam, muitas das vezes, obscurecendo esse real: ela, a imagem, não é totalmente transparente. Tem espessura, e muitas vezes nos ilude completamente, fazendo-nos acreditar que ela é o real. Daí o mito da caverna, de Platão. Imaginação torna-se alucinação, e o homem passa a ser incapaz de decifrar imagens, de reconstituir as dimensões abstraídas (Flusser, ainda). Para nos aproximar novamente do real, criamos o texto. Ao invés do tempo circular das imagens, o tempo sucessivo da decifragem das palavras. Acontece que o texto é abstração absoluta: todas as dimensões são subtraídas, e só resta a conceituação, o processo de codificação e decifração das palavras. Daí que um processo que foi criado para nos religar ao real acaba por nos afastar ainda mais dele. E a mesma obscuridade que turvou a decodificação das imagens acaba por turvar a decodificação dos textos. Exemplo disso é a leitura fundamentalista e literal que certas facções religiosas fazem de textos como a Bíblia. Em nossos dias do século XXI, temos experimentado a ambas as crises: a crise da imagem e a crise dos textos. A algaravia de informações e contrainformações é tão atordoante que abalou seriamente nossa capacidade de decifrar os códigos de imagem e de texto. A consequência disso é dramática. Pela última vez, Vilém Flusser: A crise dos textos implica o naufrágio da história toda, que é, estritamente, processo de recodificação de imagens em conceitos. História é explicação progressiva de imagens, desmagicização, conceituação. Lá onde os textos não mais significam imagens, nada resta a explicar, e a história para. Em tal mundo, explicações passam a ser supérfluas: mundo absurdo, mundo da atualidade. Como um profeta, Flusser escreveu o trecho citado acima em 1983.