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Profanemos

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Olhos, bocas e cabelos
Profanemos

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“A passagem do sagrado ao profano pode acontecer também por meio de um uso (ou melhor, de um reuso) totalmente incongruente do sagrado. Trata-se do jogo. Sabe-se que as esferas do sagrado e do jogo estão estreitamente vinculadas.” (Giorgio Agamben)

A arte possui caráter mediador, possibilita reuniões, rupturas, reflexões, ambiguidades, integrações, normas, convites tanto racionais quanto de puro sentir. O mundo de quem a consome move-se a tal ponto que estabelece-se relações diretas com a obra consumida, tanto de cunho emocional, quanto pessoal e histórico. Com o cinema não é diferente, há quem defenda que com ele este processo se potencializa, nele os registros cênicos tomam corpo, e o espectador entrepõem-se entre o diálogo de sua experiência e o falar global da obra, seus intervalos, seus lugares simbólicos, suas realidades, (im)possibilidades e partilhas. Os artistas da área cinematográfica, envoltos nesse processo de partilha do comum, fundem-se ao construir narrativo.

Na transcendência do comum cotidiano e na tangência com o mundano, o artístico cinemático se dá em infinitude de influências de sentidos comunicantes, de informações, de relações entre signos diversos. Neste fenômeno constituinte do cinematográfico, faze-se uma conciliação imperfeita com o estar no mundo, com as potências das interações sociais prévias, onde o ser em todo seu potencial contempla as éticas, e de forma dialógica perpassa as experiências estéticas.

Faze-se cinema na busca por uma transcendência contrastante com o curso da própria existência, da própria experiência, e do deslocamento do sujeito dos limites do mundo conhecido, cria-se na procura por dar conta das promoções do Ser, do aparecer das múltiplas revelações das obras de arte cinemáticas enquanto medium. De forma paralela e aparentemente contrastante, a realidade carrega concretudes até então habituais, que atravessam cognitivamente as diversas dimensões sociais organizadoras de sentido.

Suporte das experiências estéticas, o consumidor artístico, o ser ordinário em contato com o novo, vê-se em meio a um reexplorar e reconstruir imediato de sua experiência colateral. Multidimensional, o indivíduo participa de complexidades não totalmente rastreáveis pelo discurso consequente de tensões vinculadas a fatos e julgamentos estéticos. A experiência correlaciona-se com resíduos do real, o específico artístico faze-se das transformações em andamento das atualidades. Dos terrenos artísticos cinematográficos surgem olhares que desconfiam, que suportam ambiguidades, que buscam vozes dissonantes de retóricas limitantes. As artes, os cinemas, ao mesmo tempo que reforçam integrações através de impulsos lúdicos., se curvam diante a experiência, enquanto esta participa de processos multifocais do fazer cinematográfico. Parte dessas relações entre a arte e consumidor, o artista é desdobrável e transformador, interage e entreabre mundos, navega entre polos e metáforas, caminha por tensões, reivindicações criadoras e reencontros da experiência. O artista é sopro e veículo de confronto e transformação, é expositor de limites, é propulsor de ensinamentos sobre nossa própria história. Fundamental no processo de subjetivação, o cineasta busca anular-se enquanto obviedade, em ações onde liga norma e lúdico, realidade e exceção, na busca por desretratar a normalidade. O artesão-cineasta desloca o indivíduo ordinário que consome seu trabalho, desestrutura a vida nua e reinventa a jurisdição humana. Nas margens ele se faz em tomada de posição, em movimento de aproximação, onde implicar-se para não bordejar, com coragens que transcendem o sublime idealizado. Luta contra conceitos pregnantes de comportamentos, se faz em processos de desfocalizar o seu eu, enquanto direciona ao outro possibilidades de transformar.

Catalisador de diálogos com os pertencimentos, o artista-cineasta interdepende de questões caóticas das artes e de suas asserções teóricas, que moldarão uma das bases para o retrato que se desenhará do futuro das nossas sociedades. Assume relações com as atualidades históricas e políticas em que se inserem, ousam enquanto atividade cognitiva e enquanto suporte na busca por relações com apreciações, por julgamentos valorativos, por sensibilidades, por entretenimentos, por territórios, por epifanias e incongruências. São parte de um trazer de situações e interferências retratantes de um tempo, de diferentes tipos de julgamentos, são reinvenção de coordenadas, são potência política. Mergulhado no mesmo universo do consumidor de seus trabalhos, o cineasta também é sujeito de relação, é um ser que gere suas próprias agonias, lida com modalizações, com os valores do gozo, com a penetração da biopolítica em cotidianidades, independente dos modos de relação que estabelece com movimentos sociais hegemônicos ou contra-hegemônicos.

A estratégia de trabalho do ser artístico para construção de narração e enfrentamento de dispositivos, é a profanação, é a busca por uma liberdade-enfrentamento, por um caminho que restitui ao uso comum um reencontrar do que foi perdido através de sacrifícios. Profanações teóricas e práticas, que se chocam com as realidades de quem se dispõe a tornar-se cúmplice das consciências de suas obras, das instâncias, dos desejos.

Para despertar sonhos, profana-se autores, teorias, visibilidades, familiaridades, indiferenças, cotidianos, sensações, poderes, caminhos, buscas, linguagens e desejos. O artista é aquele que abre caminhos através do profano, da devolução ao uso comum. Profanemos, então.

“A profanação do improfanável é a tarefa política da geração que vem.”

– Giorgio Agamben

A passagem do profano ao sagrado e do sagrado ao profano.

“Onde o sacrifício marcava a passagem do profano ao sagrado e do sagrado ao profano, está agora um único, multiforme e incessante processo de separação, que investe toda coisa, todo lugar, toda atividade humana para dividi-la por si mesma e é totalmente indiferente à cisão sagrado/profano, divino/humano”. – Giorgio Agamben

8 Comments
    Maria do Rocio Macedo Moraes/ Maria-Estrela Lunar Amarela, no face

    Muito bom texto!

      Patrícia Louzada dos Anjos Post author

      Obrigada! 🙂

    Maria do Rocio Macedo Moraes/ Maria-Estrela Lunar, no face.

    Do livro – EgoCiência e SerCiência versus Algumas questões humanas, disponibilizado para download, tomo a liberdade de colocar aqui, o ESPAÇO 8 Sagrado e Profano

    ESPAÇO 8

    Sagrado e Profano

    O Sagrado e o Profano são duas questões humanas, milenares; por essa razão, conversaremos um pouco, sobre.

    Como gosto de fazer sempre, vejamos como define ─ neste caso o Dicionário da Academia Brasileira de Letras ─ a palavra sagrado.
    .
    sagrado
    adj. 1.

    2 Que é divino; sacro; santo: fogo sagrado.

    3Que é inviolável; sacrossanto: vale sagrado.

    4 Que é venerável; respeitável: mestre sagrado.

    Das definições acima, verificamos que a palavra
    sagrado refere-se, prioritariamente, a tudo que é considerado divino, sacro, inviolável, venerável

    .Ao sagrado, contrapõem-se, milenarmente ─ por força de pensamentos ligados, principalmente, à religião ─ o profano
    .
    Vejamos, no mesmo Dicionário da Academia Brasileira de Letras, como é definida a palavra profano
    .
    profano
    adj.

    1. Estranho à religião; que não tem nada a ver com religião…

    2. Que pertence ao mundo material em oposição ao que é de caráter espiritual ou religioso…

    3.Aquilo que é oposto às coisas religiosas: o sacro e o profano.

    Apesar de determinadas religiões instituídas terem, por força coercitiva, associado profano ao mal, veremos que os primeiros movimentos no sentido daquilo que, muito posteriormente foi instituído como
    Religião, vicejava justamente no que foi, depois, definido como
    Profano pelas religiões institucionalizadas.

    Historiadores, arqueólogos e principalmente antropólogos, evidenciam a possibilidade da primeira religião humana ter nascido espontaneamente, em períodos datados como Paleolítico e Neolítico.
    O período Paleolítico abrange100.000 a 10.000 anos a.C e o Neolítico, também conhecido como Idade da Pedra Polida, tem seu início datado em 8.000 a.C. Essa religiosidade teria sido motivada por um profundo vínculo com o Planeta
    Terra ─ chamado de Mãe ─, e com a Natureza e seus ciclos. Em
    função dessa religiosidade mais feminina, sociedades matriarcais foram se formando. Diversas civilizações antigas representam a Deusa, em variadas denominações.

    Segundo o mitologista Joseph Campbell, a mudança de uma ideia primeira da Deusa mãe, identificada com a Natureza para o conceito de Deus, deve-se aos hebreus e a sua organização patriarcal

    .Poderíamos, pelo que vimos acima, considerar que nessas eras remotas, o
    sagrado era, mais especificamente, a Natureza do Planeta Terra.

    Essa sacralidade era natural e profundamente humana, em essência, com certeza. Essas civilizações nutriam, provavelmente, uma reverência a tudo que se possa pensar e nominar como ─ natural. Uma reverência ingênita que deve ter permanecido intacta durante milhares de anos tornando-se, com o avançar de outros tipos de civilizações, algo relativamente indefinível, mas atavicamente atuante nos DNA’s subsequentes. E não poderia ser diferente; existe uma ligação intrínseca do animal humano com a Natureza e o Planeta, mesmo que não estejamos totalmente conscientes, disso. Imagine, por um momento, como deveriam se sentir, os primeiros humanos, ante a Natureza. O que representariam, para eles, a água, o sol, os raios, a chuva, as plantas, as árvores, os animais, os pássaros, enfim, tudo que viam, neste Planeta? Se a condição deles era a mesma das demais espécies animais então, provavelmente, havia aquela ligação “empática”, e uma comunicação que poderíamos chamar de “telepática” ─ que existe, ainda hoje, entre as espécies animais e a Natureza ─ com tudo que os cercava.

    Com a implantação do deus masculino, praticamente tudo que se relacionava ao Planeta Terra e a Natureza, principalmente, começou a ser tratado como
    profano até o próprio humano caso não estivesse alinhado com uma das mais diversas linhas de pensamento, imbuídas pelo deus masculino, cria do próprio pensamento humano. O que era natural passou a ser profano. O sagrado das civilizações puras e inocentes ─ comparando -as com as mais recentes ─, foi execrado por decretos nascidos, exclusivamente, do desejo de domínio e do poder, de alguns humanos. O natural, do humano, submeteu-se ao artificial, imposto.

    A ordem natural foi subvertida.

    No que vimos, acima, não cabem críticas; não cabem pensamentos de como poderia ter sido diferente, caso a humanidade não tivesse perdido seu elo de ligação com a sacralidade do Planeta Terra e da Natureza; críticas e pensamentos diferenciados, serão objeto de discussão, de forma mais intensa, em Espaço adiante, ao tratarmos do tema Religião, quando voltaremos a enfocar o sagrado e o profano.

      Patrícia Louzada dos Anjos Post author

      🙂

    Tulio

    Excelente texto

      Patrícia Louzada dos Anjos Post author

      🙂 Obrigada

    Cíntia Louzada

    Parabéns pelo texto…
    Adorei…
    Cada dia que passa você está desabrochando em sua arte da escrita…
    Continue assim… Quem sabe não sai um livro?

    Patrícia Louzada dos Anjos Post author

    <3 Obrigada

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