No início era a magia

Ou, de como a arte de 15.000 anos atrás está entre as realizações máximas da história da pintura.

 

“Depois de Altamira, tudo é decadência” – é o que teria dito Picasso depois de visitar a caverna, situada na Espanha. Não há o mínimo exagero nisso. Creio que não exista paralelo em qualquer outro campo de atuação do ser humano, no qual uma realização da era paleolítica já demonstre o mais absoluto domínio dos meios e das técnicas disponíveis, e que seja, sob qualquer critério que se adote, irrepreensível e que esteja entre as realizações máximas desse mesmo campo.
A arte do Paleolítico Superior (entre 40.000 e 10.000 anos atrás), como a existente em Altamira ou Lascaux, na França, é singular. Não surpreende que Marcelino de Sautuola, o arqueólogo amador que descobriu as pinturas em 1879 (na verdade, foi sua filha de nove anos quem primeiro notou as pinturas nas paredes e no teto), tenha sido ridicularizado e acusado de forjar as imagens. Somente em 1902 reconheceu-se que aquelas pinturas eram, de fato, legítimas.
O impacto dessa descoberta foi imenso entre os artistas do início do século XX, e foi, além de Cèzanne e de uma concepção menos eurocêntrica do mundo, um dos catalisadores da criação da arte moderna. E também um duro golpe na arrogância dos chamados homens de ciência europeus, que se consideravam o apogeu do gênero humano (mas que só baixariam a crista dezesseis anos depois, ao final da Grande Guerra) e que mal e mal podiam aceitar que um ser humano de 14.000 anos atrás pudesse ter feito algo tão absurdamente moderno.
O que primeiro chama a atenção nessas pinturas é seu naturalismo. São animais traçados com uma acuidade impressionante, muitas vezes até com sugestões de movimento. O uso da cor e do relevo das paredes é feito para potencializar ao máximo a ilusão do real, e sugerem os efeitos da luz sobre a pelagem dos animais retratados. As omissões e alusões que existem no traçado das figuras são sinais claros da existência de dois momentos distintos na sua criação. No primeiro, a observação, com uma intensidade que nos é totalmente estranha; posteriormente, a capacidade de retomar o que restou dessa observação aguda e a transposição disso de maneira sucinta e naturalística, através dos instrumentos de que dispunha e fazendo uso consciente das possibilidades oferecidas pela superfície irregular das paredes. O resultado disso é uma imagem direta e condensada, sem nenhum vício, fórmula ou racionalização conceitual. Só se verá algo semelhante a essa abordagem nos fins do século XIX, com o Impressionismo.
Depois, o que se percebe é que essas pinturas não foram feitas para a apreciação estética. Os bisões, alces e outros animais estão atulhados uns sobre os outros em locais de acesso proibitivo para qualquer apreciador curioso. Há um consenso dos estudiosos ao se afirmar que essas imagens possuíam uma função mágica. Arnold Hauser define com precisão o que era essa função:

O caçador e pintor do paleolítico pensava estar na posse da própria coisa na pintura, pensava ter adquirido poder sobre o objeto por meio do retrato do objeto. Acreditava que o animal verdadeiro realmente sofria a morte do animal retratado na pintura. A representação pictórica nada mais era, a seus olhos, do que a antecipação do efeito desejado; o evento real tinha de se seguir inevitavelmente à ação mágica da representação, (…), uma vez que estavam separados um do outro apenas pelos meios supostamente irreais do espaço e do tempo.

É essa ligação com a magia que explica o naturalismo das imagens, já que sua função era SER o animal retratado, substituí-lo durante a antecipação da caçada.
Não é surpresa, portanto, que essa arte se modifique completamente quando o homem deixa de ser um caçador/coletor nômade e passa a cultivar seu próprio alimento, ao mesmo tempo em que adota o sedentarismo durante o período Neolítico (que se inicia em 10.000 A.C.). A partir daí a arte torna-se estilizada, quase caligráfica, usando e abusando de padrões e formas geométricas que se repetem nas mais diversas culturas e nos mais diferentes lugares. Não deixa de ser uma arte mais pobre e enrijecida, que pouco irá se modificar até o surgimento das grandes civilizações.
No início, portanto, era a Magia. Por maior que seja o valor estético das obras de Altamira, ou de Lascaux, este é um valor secundário, periférico, até mesmo inexistente. É o que apreciamos hoje, e não há problema nenhum em relação a isso.
Se o caçador/xamã que executou as pinturas de Altamira olhou para as figuras que havia pintado e apreciou o que tinha feito, nós não sabemos. Mas ele poderia conversar de igual para igual com Picasso, com Giotto, com Michelangelo ou com Cèzanne. Ou mesmo, quem sabe, com um certo ar de superioridade; eu não o repreenderia por isso.

About the author

Marcos Schmidt

Marcos Schmidt é designer gráfico e ilustrador. Vive e trabalha na irremediável cidade de São Paulo.