A Mídia, Prates, Pondé e os pobres

Na mesma semana, dois fenômenos idênticos: de um lado, um “tal de” Luiz Carlos Prates (desculpem, eu o desconhecia até então) diz na TV que pobres não devem ter carros; do outro, o intelectual (?) Luiz Felipe Pondé lamenta no jornal o fato de pobres viajarem de avião. Manifestações que chocaram muitos telespectadores e leitores.

Prates e Pondé são figuras emergentes no Olimpo dos repetitivos popstars da grande mídia, que tem ainda o vazio Arnaldo Jabor e os Veja boys Diogo Mainardi e Reinaldo Azevedo entre seus membros, todos altamente irritados com o governo Lula.

Não vou entrar nos méritos do atual presidente. Mas o fato é que seu governo permitiu, sim, que muitos pobres – embora não todos – passassem a comprar mais, a realizar “planos” ou “sonhos” de consumo. Ainda que o carro não seja zero quilômetro e a viagem de avião seja comprada em uma promoção, o fato é que uma parcela da população mais pobre saiu do patamar da mera satisfação de necessidades para o nível da realização de desejos. E isso incomoda muito aos colunistas e comentaristas da mídia.

A principal função do consumo na atualidade não é satisfazer necessidades, mas diferenciar e identificar os consumidores em grupos. Ou seja: diferenciar os pobres da classe média e identificar entre si os membros da classe média. Mas e os ricos? Bem, os ricos estão acima disso tudo, seguros em sua diferença porque seu dinheiro provém do capital e não da renda e essa é uma vantagem estratosférica na lógica da diferenciação.

A partir do momento em que um pobre pode comprar as mesmas coisas que eu, que sou da classe média, pouco me diferencia dele e meu lugar privilegiado na ordem social está ameaçado. Meu pequeno consumo (no sentido de pequeno burguês) de luxo se torna algo básico e acessível a todos. Se os pobres passam a ter autonomia de consumir o mesmo que eu, eles passam a integrar o mesmo espaço que eu na pirâmide da dominação social. E isso me obriga a gastar mais, a trabalhar mais e a me endividar mais caso eu queira continuar me diferenciando pelo consumo e queira subir um degrau nessa escala. A situação é de total insegurança: meus limites estão abalados, minha estabilidade econômica também e minhas certezas mais profundas, idem. Os pobres estão mais próximos de mim do que nunca e meu pavor de me tornar um deles começa a se concretizar.

Em O Mal-Estar na Civilização, Freud mostra que é a proximidade do outro que incomoda. (O livro, um dos mais importantes de Freud para pensar a sociedade, você baixa aqui). Quanto mais semelhante ele é de nós, mais o desprezamos, principalmente porque essa semelhança ameaça a noção construída de “nós” e de “outros”. As menores diferenças nos servem para construir tal diferenciação, e Freud deu a isso o nome de “narcisismo das pequenas diferenças”, O dinheiro e, no capitalismo atual, principalmente o consumo – sim, podemos consumir sem ter dinheiro, graças a cheque especial, cartão de crédito e financiamentos – ajudam a classe média a forjar sua “pequena diferença” em relação aos pobres.

Freud é bem específico:

“É sempre possível unir um considerável número de pessoas no amor, enquanto sobrarem outras pessoas para receberem as manifestações de sua agressividade” (p. 136 da edição da Imago).

A diferença forjada é o principal elemento para legitimar a estratificação social e, com ela, a dominação de um grupo sobre outro. E quando falamos em mídia falamos em dominação.

Um dos principais estudiosos contemporâneos da mídia, John B. Thompson mostra que todo o conteúdo produzido pela mídia é ideológico. Ele estuda os principais conceitos de ideologia da filosofia e da política – Marx, Napoleão, Lukács, Lênin, Mannheim – e elabora uma definição própria do termo: ideologia é um sistema de crenças e práticas que serve para estabelecer e sustentar as relações de dominação. (O desenvolvimento e definição literal do conceito estão em seu livro Ideologia e Cultura Moderna, Editora Vozes.) Thompson também mostra que uma das mais eficazes práticas ideológicas é a diferenciação entre “nós” e os “outros”.

Os (pseudo)intelectuais que proliferam na mídia – comentaristas e cronistas que expressam opiniões preconceituosas contra os pobres, como Pondé, Prates, Jabor, Mainardi, Azevedo – têm espaço privilegiado nos veículos e estão ali por uma razão. Eles são capazes de produzir argumentos, elaborar teses, forjar ideias, colocar em palavras a lógica nem sempre consciente de diferenciação à qual a classe média se apega para construir sua identidade e excluir os pobres de quase todos os campos da vida em sociedade. Esses “intelectuais” – alçados a esse posto não por sua competência e conhecimento, mas por dizerem o que certos grupos querem ouvir – alimentam com suas frases bem construídas a fragmentação da sociedade em camadas e a diferenciação entre cada uma delas. E não é por acaso que “situam” a diferença no universo do consumo e do prazer. São esses os elementos que humanizam o outro, o pobre, e os aproximam cada vez mais da classe média.

O ódio que expressam quando falam dos pobres é um ódio que, na verdade, poderia ser voltado a si mesmos. Odeiam-se por estarem tão próximos dos pobres, mas não conseguem enxergar essa proximidade como o que ela é: o fato de fazerem parte de uma fração mediana da pirâmide econômica, sem o capital – financeiro, social, cultural – necessário para serem alçados à classe mais alta.

Pierre Bourdieu, um mestre da sociologia e do estudo das formas de diferenciação de classe, além de “pai” dessa visão do capital como algo que vai além do dinheiro, tem duas falas muito apropriadas em seu livro A Distinção (pdf) para pensar esse ódio dos pobres. Uma é sobre a classe média (pequena burguesia): “o pequeno burguês se faz pequeno para ser burguês”, quer dizer, é melhor ser um burguês minúsculo (e medíocre) do que ser um pobre. A outra é sobre os intelectuais. Diz que eles são a fração dominada da classe dominante, ou seja, o capital de que dispõem (conhecimento, talvez, ou o mero bom uso das palavras) não é suficiente para lhes dar o poder, apenas para colocá-los a serviço do poder. Duas ideias para ter em mente na próxima vez que você abrir um jornal ou ouvir um “tal de” Prates falar na TV.

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Beauvoiriana (aka Literariamente)