Mulheres sem voz


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Em fevereiro, a organização VIDA, criada em 2009 como um fórum independente de mulheres escritoras, divulgou um levantamento estatístico interessante. A pesquisa retrata, em gráficos e números, o espaço reservado pelas principais publicações literárias norte-americanas e britânicas, em 2010, às escritoras, suas obras e às profissionais críticas literárias e resenhistas. (Os resultados você pode conferir nesta página.).

A pesquisa mostra que as resenhas de livros, as notícias relacionadas a literatura e o mercado de trabalho em torno da produção de críticas, resenhas, entrevistas e ensaios literários estão longe de ser igualmente partilhados entre homens e mulheres. Às mulheres cabe uma fatia de cerca de 25% do espaço de debate e divulgação de ideias. E, embora não pareça, isso tem tudo a ver com algumas das discussões deste Dia Internacional da Mulher.

Embora as estatísticas se refiram aos EUA e Europa, principalmente, as revistas analisadas – Paris Review, Granta, London Review of Books, The New Yorker etc. – são referência para as maiores editoras mundo afora e inspiram pautas em publicações inclusive no Brasil. (Confesso que senti falta, na pesquisa, da cobertura literária da britânica The Guardian Review, para mim, uma das melhores pela variedade de pontos de vista, pela diversidade de resenhistas e pelo excepcional trabalho de pesquisa.) Além de serem referências, essas publicações são também produzidas em países que se orgulham de serem democráticos e igualitários. E é por isso que a pesquisa não fala apenas da questão editorial, mas da condição da mulher na contemporaneidade.

Os números revelam tendências e fatos, mas acredito que também indiquem algo menos palpável: as mulheres ainda não são reconhecidas como produtoras de conhecimento e de reflexões e seus pensamentos não são disseminados, abertamente discutidos e amplamente comentados como os dos homens. E isso certamente tem algo a ver com a imagem que a mulher tem nas sociedades ditas democráticas.

Pode-se inferir desses números que essa imagem subestima a mulher pensadora. Se o mercado de trabalho abre cada vez mais espaço às mulheres, é na posição de executoras, e não arquitetas, idealizadoras, que elas estão concentradas. Essas palavras – executar e idealizar – remetem à velha separação entre trabalho físico e trabalho intelectual. Uma separação, por si só, ideológica e inexata, como mostra brilhantemente Richard Sennett em O Artífice. Entretanto, essa separação é a base de sustentação de muitas desigualdades de classe e gênero. Quem executa o trabalho tem status inferior ao de quem o idealiza, sendo portanto menos valorizado e, principalmente, remunerado em bases menores.

Hoje, no Brasil, uma mulher exercendo a mesma função que um homem recebe um salário em média 76% menor do que o de seu colega, segundo pesquisa recente do Dieese. Da exploração ampliada da mão de obra feminina à redução de sua poupança para o futuro, o salário menor tem várias implicações. Uma delas é que as mulheres ainda são remuneradas com base em suas necessidades básicas (alimentação, vestuário). Para elas, pequenos luxos e investimento em educação e cultura como a compra de um livro, a visita a uma exposição, o financiamento de um curso ou a ida ao cinema são menos viáveis, porque têm menos dinheiro. Desde Virginia Woolf e seu obrigatório Um teto todo seu, sabemos que as condições materiais estão diretamente ligadas ao acesso que a mulher terá aos campos artístico, literário e intelectual.  (As relações entre condições materiais e produção intelectual, aliás, são complexas, ambíguas e características essenciais desses campos, como mostra Pierre Bourdieu em As regras da arte).

Não seria, então, o caso de perguntarmos se a disparidade numérica é causa, e não consequência, do menor espaço dado às mulheres e a seus escritos entre os intelectuais? Se as mulheres têm menos dinheiro disponível para gastar em livros, elas são um público secundário das editoras. Ao mesmo tempo, se elas leem menos e têm menos acesso aos livros, elas também não desenvolvem, tanto quanto os homens, seu potencial como intelectuais.

Em sua resposta aos números de VIDA, Ruth Franklin, editora de uma das publicações analisadas, The New Republic, pondera que há mais homens escrevendo livros e também escrevendo sobre livros do que mulheres. E isso, em si, leva ao recorte de gênero que a pesquisa reflete. (Sobre o espaço das mulheres na mídia, veja o recente relatório da organização Repórteres sem Fronteiras.) Ruth certamente tem razão e ela acrescenta que até mesmo os editores que dizem escolher os livros a serem divulgados por sua “qualidade” estão sujeitos a uma definição do termo baseada na cultura dominante (i. e., machista).

Essa é a engrenagem que dificulta que as mulheres possam investir tanto quanto os homens no desenvolvimento e no prazer intelectual e, mais ainda, que possam transformar esse investimento em profissão.

Com base em sua posição como “outro” na sociedade (e não no fato de nascerem com um corpo feminino), as mulheres têm percepções diferentes das masculinas sobre as relações de poder, as interações sociais, as narrativas de vida, o desenvolvimento econômico etc. Entretanto, se suas ideias não são debatidas e confrontadas, se suas percepções não são divulgadas e analisadas, o debate não se abre a essas diferenças. A mulher permanece o “outro”.

Talvez seja por isso que, entre outras coisas, temos uma sociedade incapaz de avaliar, para além das posições conservadoras, sustentadas por teses morais e religiosas por si só impregnadas de apologia à desigualdade, questões importantes para ampliação dos direitos independentemente de gênero. Questões como a descriminalização do aborto (sobre a qual escrevi aqui), a reprodução da violência física e simbólica (que abordei neste texto) e a dupla jornada de trabalho…

Quando as mulheres não têm voz como produtoras de conhecimento e reflexão, uma parte da história social deixa de ser contada. Essa parte é a que traz a visão dos dominados. Sem voz, as mulheres continuam, de alguma forma, confinadas ao espaço privado, de reprodução das condições de vida e da força de trabalho, ao casamento, aos trabalhos invisíveis e não valorizados. Negar às escritoras  espaço para divulgar seu trabalho e seu pensamento é uma forma de calar não apenas esse grupo restrito de mulheres; é uma forma de calar os desejos de uma política diferente, de uma vida social menos desigual.

Por isso tudo, talvez valha a pena tentar um questionamento da próxima vez que você abrir seu suplemento literário impresso ou digital. Será que o discurso que traz em cada linha, a favor da cultura e da democracia, se sustenta nas entrelinhas e na forma como é produzido e editado o texto? Ou será que essas páginas são apenas mais um espaço de reprodução de um certo recorte ideológico da cultura, conservador em termos políticos, machista e reducionista?

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Beauvoiriana (aka Literariamente)