Vidas que não valem nada?


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A frase foi escrita sem eufemismos e com erro de ortografia: “Nordestisto não é gente, faça um favor a SP, mate um nordestino afogado!”. Foi publicada em uma rede social em que o limite de 140 caracteres para cada post não é obstáculo para o alcance da mensagem. No Twitter, um simples clique no botão Retweet transforma qualquer opinião em um eco que se propaga em larga escala.

A xenofobia expressa na mensagem logo encontrou quem a apoiasse e quem se revoltasse. Houve uma verdadeira mobilização no Twitter. A autora da frase perdeu o emprego e será processada. (Para saber mais sobre o caso, clique aqui e aqui.) Mas, para além da revolta, das punições, o que queremos dizer quando expressamos casualmente e sem muito refletir uma opinião preconceituosa?

Uma frase dita sem reflexão consegue mais facilmente burlar nossa autocensura, o que dá margem a profundas interpretações. No caso específico, pode-se dizer que a frase fala sobre o preconceito dos paulistas contra os nordestinos – de longa data, embora esteja longe de ser unânime. Também denota a suposta superioridade de quem faz parte de um grupo em detrimento de outro. Mas, principalmente, revela um preconceito muito mais profundo e que se encontra em qualquer tempo e lugar: o de que as vidas humanas se dividem entre aquelas que devem ser preservadas e as que podem ser descartadas. Exemplos disso se encontram em diversas outras opiniões que expressamos no cotidiano.

Em seu livro Vidas Desperdiçadas (2005), Zygmunt Bauman reflete sobre como determinados grupos e indivíduos são desvalorizados em nossa contemporaneidade. Bauman articula a análise sobre o outro à questão da supremacia da lógica de mercado capitalista. O mercado não tem apenas uma função concreta de ordenar o consumo e a produção, mas também a função simbólica de representar a ordem, a pureza, o certo, o justo, a segurança. Pessoas que não podem consumir, que não produzem, que não se comportam de acordo com as regras desse jogo, estão “fora de lugar” na sociedade o que, segundo o autor, equivaleria a dizer que são sujeira, impureza, desordem e insegurança.

Por longo tempo, no Brasil, o sudeste se alimentou desse tipo de visão sobre o nordeste. Os nordestinos eram os pobres em contraposição aos ricos do sudeste, os atrasados versus a “locomotiva do progresso, os incultos diante dos educados em boas escolas. É o mesmo preconceito que se revela em falas que tentam enquadrar o presidente da República, Luiz Inácio Lula da Silva, nas categorias de analfabeto, pobre, ignorante. É o preconceito que escapa na mensagem do Twitter.

Temos a tendência a limitar a ideia de segregação a aspectos econômicos ou raciais, mas trata-se de algo muito mais amplo e complexo. A segregação tem também aspectos políticos. Não se limita a critérios como renda, pobreza, poder aquisitivo, condições de vida, mas pega carona neles, mesmo que de forma equivocada, para chegar a justificar toda a trama das relações sociais, a desigualdade e o acesso ao poder. Em nosso recente regime autoritário, nossa sociedade aprendeu também que a restrição às liberdades individuais é uma eficiente forma de diferenciação política e de segregação. Em palavras tortuosas e cheias de ódio, a mensagem do Twitter quer dizer que ao outro deve ser negado, inclusive, o direito ao voto.

Essencialmente, o confronto com essas vidas que podem ser desperdiçadas na fome, na violação de seus direitos, na morte, é o confronto com a diferença. Esse outro que pensa diferente só pode ser suportado se for passivo. Será tolerado, desde que não se manifeste em sua diferença, que não coloque em dúvida as formas de pensar, agir, consumir e votar legitimadas pelas elites, por quem detém o poder econômico ou político.

O que provocou a manifestação xenófoba foi a suposição de que o nordestino, esse outro, de alguma forma teve uma ação decisiva no resultado das eleições presidenciais. Não importa se essa suposição é verdadeira ou não. Para um preconceito, a verdade é irrelevante. Ele se manifesta apesar e além do que pode provar a lógica. O que está em jogo aqui é que o nordestino foi lançado instantaneamente de volta a seu lugar de outro pela manipulação ideológica de mapas e números e todo o preconceito histórico contra ele de repente encontrou uma via de escape. Esse outro saiu, portanto, da passividade, igualou-se, e isso é intolerável na ordem que só o suporta sob a condição da invisibilidade.

O que está em jogo é também uma uniformização dos padrões de comportamento, das identidades, das características aceitas. E padronização sempre será um outro nome para segregação. A lógica capitalista da produção e do consumo, da diferenciação e da semelhança, não está contida apenas nas atividades do mercado. Ela se espalha por todos os aspectos da vida social. Em um artigo intitulado A violência urbana é particularidade da sociedade brasileira? (1999) (que pode ser lido on-line), Márcia Regina da Costa analisa essa relação:

“De qualquer maneira, graças ao capitalismo, idealizamos em escala mundial o lucro como valor supremo e o consumo como fonte mágica de superação de dores e angústias em direção ao prazer e à felicidade. […] O problema é que essa ‘ideologia’ capitalista está tão entranhada em nossos corpos e consciências que, em geral, acabamos por atribuir um caráter não ideológico a muitas dessas violências contemporâneas. O ódio ao outro, a negação do outro, o prazer em destruir o semelhante, presentes em muitas das violências contemporâneas podem não ser ideológicos apenas em um sentido restrito do termo. Esses atos desnudam a face sombria presente nessas sociedades em que a solidariedade e a identificação com o outro são um constante perigo.” (COSTA, 1999, pp.10-11)

Colocar o outro no lugar da irrelevância – “não é gente” – é uma maneira brutal de negar-lhe a existência, simbólica e fisicamente; é dizer que podem ser mortos porque a indiferença em relação a eles é tanta que ninguém perceberia que aquelas vidas se perderam. Em uma mensagem pelo Twitter, a irrelevância do outro foi construída pela linguagem; sua negação e sua ausência de valor aparecem como legítimas, naturais, encobrindo o fato de serem produzidas por um encadeamento de desigualdades construídas nas relações sociais.
 

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Beauvoiriana (aka Literariamente)