Página 11 By Diângeli Soares / Share 0 Tweet Saiu na Folha de São Paulo, no dia 09 de Dezembro de 2010: “Eleição para centro acadêmico cria onda anti-gay em Universidade”. A universidade em questão é a UFCSPA – Universidade Federal de Ciências da Saúde de Porto Alegre, a antiga “Fundação” e o Centro Acadêmico é o CA 22 de Março, centro acadêmico de medicina desta universidade, que eu conheço e já tive a oportunidade de visitar algumas vezes durante os meus anos de Movimento Estudantil. Rápida recapitulação do caso para quem não acompanhou pela imprensa: Venceu, nas últimas eleições, uma chapa composta por dois rapazes que são homossexuais assumidos e o fato provocou uma onda de repúdio na lista de e-mails dos alunos da faculdade. Dentre as declarações, reproduzo abaixo a mais chocante: “Caros e futuros colegas, e se, somente se, a solução fosse cada um de nós, sensatos, tomarmos alguma atitude, qualquer atitude, no momento em que essa escória nos procurar para curar suas doenças venéreas, e qualquer demais praga que se alastre por seus corpos nojentos? Assim como eles, está na hora de unirmos forças e veladamente fazer o que nos couber, para dar fim, pouco a pouco nesta peste! No momento da consulta de uma bicha, ou recuse-se (pelos meios cabíveis em lei) ou trate-o erroneamente!!!” Assustador não? Não. Assustador é pouco. Não vou ficar aqui evocando artigos do Código de Ética Médica, para explicar o tamanho da complicação que é o rapaz não ser apenas homofóbico, mas ser também um futuro médico que defende que os homossexuais sejam tratados de forma errada, para que morram e livrem o mundo das “pragas que se alastram pelos seus corpos nojentos”. Esta frase aliás, me lembra muito um certo herói nacional, cunhado pelas telinhas da globo, o Marcelo Dourado. Marcelo Dourado ganhou seguidores – A Máfia Dourada – depois que “ensinou” em horário nobre a todas as famílias brasileiras, que heterossexual não pega “doença venérea”. Eu vi o Pedro Bial entrar no ar diversas vezes para dizer com todas as letras que o Dourado não era homofóbico. Alguém viu ele entrando no ar para esclarecer a asneira que o “herói” estava falando? Eu não vi. Só o que eu vi foi aquela nota dizendo que maiores informações sobre o vírus do HIV podem ser encontradas no site do Ministério da Saúde. Não acho que isso compense o dano causado pela propaganda feita durante o programa, da mesma forma que não acho que as advertências em fundo azul do Ministério da Saúde, compensavam toda aquela vibe máscula do Cowboy da Malboro. Mas deixa isso do código de ética para os professores de Deontologia e o Marcelo Dourado para o lixo do esquecimento, junto com o cowboy, que já morreu faz tempo. O que eu queria comentar mesmo são duas coisas: Primeiro, li na Zero Hora que o autor do e-mail se desculpou com os novos Coordenadores Gerais do CA22, dizendo que na realidade era tudo uma brincadeira e que no dia em questão estava com amigos em um bar, já bastante embriagado. Sem entrar no mérito de que, normalmente, as pessoas quando bebem tendem a errar algumas vírgulas e a trocar algumas letras, coisa que não acontece no monstruoso, mas muito bem redigido e-mail do rapaz, quando é que as pessoas vão entender que preconceito não tem graça e que alegar “humor” não alivia, só piora esse tipo de situação? Toda brincadeira tem um fundo de verdade. Aliás, se não tivesse, não teria graça, porque as pessoas não conseguiriam se identificar com ela. Por exemplo: Piadas sobre irlandeses, são bastante comuns nos Estados Unidos e na Europa. Algum brasileiro acha graça em piada de irlandês? Nenhum. Porque não conseguimos localizar no nosso dia a dia a situação satirizada, nem nos identificar com o contador da piada. Piada homofóbica só têm “graça”, porque há uma discriminação com a qual conseguimos nos identificar, no nosso dia a dia. E a “graça” advém do respaldo social à esta discriminação. É o tal “meio receptivo”, de que fala um dos estudantes na entrevista da Zero Hora. Se o meio não fosse receptivo, ninguém teria coragem de enviar um email dizendo aquelas coisas. Existem duas formas de reagir à piadas sobre loiras, negros, judeus, gays e – porque não – irlandeses: Rir e sustentar um senso de superioridade que já foi responsável pela escravidão, pelo holocausto e, no futuro, pode ser responsável por diagnósticos errados e prescrições assassinas ou interromper o ciclo e dar um salto a mais na escala evolutiva da humanidade. Já houve um tempo em que costurar ciganos dentro da barriga de cavalos e ver o bicho se estribuchar até morrer – com a pessoa lá dentro – era engraçado. Era um tempo em que se queimavam bruxas e hereges nas fogueiras, em que se aplicavam métodos requintados de tortura e execuções em praça pública atraiam famílias, como qualquer programa dominical de hoje em dia. Mas nós evoluímos. Não é mais engraçado costurar ninguém em lugar nenhum, nem assistir à decapitações. Quando vamos evoluir no resto? Ou é muito difícil estabelecer o paralelo entre as duas situações? A outra coisa que eu queria comentar é a fala do estudante, também na entrevista da Zero Hora. O Igor Rabuske Araújo, um dos novos coordenadores gerais do CA22, disse à Zero Hora que a universidade precisa aprender a lidar com esse tipo de situação. Coberto de razão, o Igor, de novo. A universidade e os nossos cursos não sabem lidar com esse tipo de situação, e mais: são responsáveis pela perpetuação desse e de diversos outros tipos de preconceito, nos quais saímos escolados após seis anos de faculdade de medicina. Por isso escrevo aqui para destacar a grande importância que tem o Movimento Estudantil, na caminhada desse pessoal que começou agora a participar do CA22. O movimento estudantil é uma oportunidade ímpar de entender que o preconceito que mobiliza as piadas contra as “bichas” é o mesmo preconceito que mobiliza as piadas contra os “tigres”, um estereótipo famoso pelos corredores dos hospitais, usado para classificar pacientes de origem humilde. São os tipos “selvagens”, que brotam nos hospitais públicos e que o SUS nos obriga a atender. O movimento estudantil nos oferece uma grande oportunidade de desnudar esses preconceitos e entender que tudo isto se origina na forma como a nossa sociedade é organizada. E esta é a maior lição do movimento estudantil: Se não mudarmos tudo, não mudamos nada. Por isso fazer política é importante. A UFCSPA, com todos os percalços, me parece estar vivendo um bom momento. Uma ocupação de reitoria, com a solidariedade dos centros acadêmicos de todo o Brasil, a fundação de um DCE e agora, uma gestão de centro acadêmico que teve coragem de levar adiante uma denúncia contra um ato de ódio, que poderia muito bem ter passado em branco, como “piada” em uma simples lista de e-mails. Tudo isso no mesmo ano. Tomara que o momento seja aproveitado e que renda bons frutos.