Podemos, sem grande dificuldade, perceber tipos diferentes de silêncio. O silêncio grave, o silêncio solene, o silêncio constrangedor, o silêncio do espanto, o silêncio da culpa, e por aí seguimos. Há o silêncio de Deus, marca registrada de Ingmar Bergman, que é menos um silêncio do que um diálogo disfuncional, no qual uma das partes recusa-se a responder.
O retrato do menino Felipe Próspero foi pintado por Velázquez em 1659, quando o herdeiro tinha dois anos de idade. A criança está de pé, olhando para o observador. Apoia a mão direita no encosto de uma poltrona, na qual está esparramado um cachorrinho, que também nos olha diretamente. Para este escriba, há algo do silêncio bergmaniano nessa pintura. Menos de Deus, no entanto, e mais do cachorrinho.
Quando se dobra o corredor e damos de cara com essa pintura, o cachorrinho do príncipe herdeiro nos faz calar. Não que seja um olhar feroz, muito pelo contrário: ele parece até sorrir. Mas ele nos cala, e torna o ato de se olhar para o retrato um exercício silencioso. O menino nos olha, o cachorrinho nos olha, e 358 anos nos separam. Tão próximos e tão distantes, reza o clichê. O olhar do menino é um olhar régio, portanto meio vazio. O olhar do cãozinho é vívido (não são os atores que dizem que não se deve contracenar com animaizinhos, pois eles roubam a cena?). Olho mais para ele do que para o menino. E me sinto desarmado e inquieto por causa do olhar do cachorro. Talvez eu sinta vontade de perguntar: tá olhando o quê? Mas a resposta é a mesma da de Deus nos filmes de Bergman: silêncio.
Deixo de lado as interpretações trágicas: o menino, de saúde frágil, morrerá dois anos depois. Daí aquele tipo de leitura que transforma o fundo escuro da pintura num presságio da morte. Não me parece ser o caso. A criança parece saudável, e Velázquez é pintor, não é adivinho nem médico. E é um retrato oficial, não esqueçamos disso.
Mas, se Velázquez não é adivinho, bem pode ser chamado de mago, ou coisa parecida. Seu quadro é uma operação mágica. Muito bem-sucedida, afinal.
Felipe Próspero é retratado com uma figa, uma pata de texugo, uma castanha de ouro, avelã de ouro e um sino de ouro: são todos amuletos contra sortilégios e mau-olhado. Especialmente o mau-olhado. Afinal, era o príncipe-herdeiro, e havia preocupação extrema como sua saúde e seu bem-estar. Esses amuletos foram dados de presente pelo papa, muito provavelmente.
O talismã mais eficiente, no entanto, é o recurso pictórico conjurado por Velázquez: o cachorrinho que nos olha e nos desarma, e que, consequentemente, evita que olhemos o frágil herdeiro diretamente nos olhos. Há 358 anos tem funcionado.
Fala Marcos, muito legal o texto.
Comento: o menino tava cheio de amuletos porque era doente, bastante. O pai dele casou com a sobrinha e esse lance de casar gente da mesma família durante acabou dando merda. Esse menino, Felipe, foi o primeiro dos filhos desses reis a sobreviver mais que dois anos. No final morre quase ao mesmo tempo que vem ao mundo seu irmão, Carlos II, que embora débil chegou a idade adulta, mas não pôde ter filhos. Quando Carlos II morre se desata a guerra da sucessão, guerra que acaba com a conquista de Barcelona em 1714 (daí os gritos por independência justo no minuto 17 de cada jogo do Barça).
Um abraço véi 🙂
Meu caro Zé, eu deveria ter te consultado antes de escrever esse texto! Não sabia dessa história dos jogos do Barcelona.
Grande abraço prá você também!
Boa escolha do tema e boas colocações. Velasquez é sensacional. Meu palpite é parecido com o do autor: para o menino nós olhamos e ele se deixa olhar, mas o cachorro nos olha e nos intriga. Como é que o Velasquez consegue este truque. É realmente impressionante!
Caro Eduardo, acho que foi Braque que escreveu que a a única coisa que importa na arte é o que não pode ser explicado. Eu faço coro.