Ao Sul de Lugar Nenhum By Diogo Brunner / Share 0 Tweet Para os fãs de Galvão Bueno e do Brasil-nação-“pátria-de-chuteiras”- não é fácil entender as sutilezas elefânticas que distanciam Pelé e Maradona. Não está em questão aqui a bola nos pés, o número de gols ou títulos, mesmo porque comparações desse tipo necessariamente teriam que levar em conta seus determinados momentos históricos. Kusturica, cineasta Sérvio que fez Underground entre outros, constrói um documentário sobre um dos maiores ídolos do futebol, mas onde o futebol nem sempre está em primeiro plano. Molda a figura humana de Maradona, o grande mito que não hesita em chorar, polemizar ou pedir perdão. O cara que escancarou sua vida e não viu o crescimento das filhas entorpecido pelas drogas que estava. O cara que tem Guevara tatuado no braço e se mostra de alguma forma confuso politicamente, mas com um direcionamento muito transparente. Na Copa de 86, vencida pela Argentina, Maradona atinge seu auge ao fazer os dois gols contra a Inglaterra nas quartas-de-final. Um considerado o gol do século, o outro com a mão. De Deus. “Me senti roubando a carteira de um inglês”, diria gratificado Maradona. O auge não era apenas pela consagração futebolística. Como um revolucionário, Maradona vingava ali a opressão que seu povo sofrera, massacrado pelos Ingleses na Guerra das Malvinas, alguns anos antes. Devolvia o sangue derramado com genialidade malandra. Fato é que não soube lidar com a idolatria que o cercava, mas renasceu com a mesma garra febril que demonstrava em la cancha. Maradona não tem medo de soar arrogante porque também soube apanhar. O filme emociona com Dieguito cantando, chorando, destilando veneno, amando as filhas e agradecendo o braço forte da mulher que ama e que esteve sempre ao seu lado. Kusturica conduz o filme como um maestro, como um amigo prestando uma homenagem sincera. Também fizeram um filme para o Pelé, aquele que fez mil gols. O tal “Pelé Eterno”. Mas e o Pelé que não quis reconhecer uma filha, que anda de mãos dadas com os maiores bandidos do futebol brasileiro, que canta músicas infantilóides (que ele próprio compõe) e adora aparecer nas câmeras em momentos chave para fazer auto-promoção? Que nunca desce de um pedestal que só ele enxerga? Se Pelé foi melhor que Maradona? Que importa? O futebol é magia além dos campos, é manifestação cultural de um povo. Maradona encarna um espírito latino americano de luta, de alma, de um humanismo que comporta erros e acertos. Algo muito em falta no mar de marasmo que vivemos. Muitos jovens nem conhecem Pelé, ou pior, não se interessam por sua história, algo impensável na Argentina de Maradona. Pelé parece algo insosso, um nome, mais que uma vida real. O golpe de misericórdia de Kusturica é trazer à cena Mano Chao, músico sem fronteiras, cantando uma música composta e tocada especialmente para Maradona (que você pode ou deve ver aqui). As lágrimas que correm naquele momento são isentas de qualquer julgamento que não seja sobre um cara que é e sempre foi ele mesmo. Viveu como quis. Pro bem e pro mal. Antes que mandem eu me mudar para Argentina eu peço que na dúvida assistam aos dois filmes e façam as devidas comparações, pois a própria forma dos filmes diz (ou esconde) muito sobre seus protagonistas.