ELA

Theodore (Joaquin Phoenix) inicializa Samantha

                Devo já avisar que esta resenha é bastante pessoal e totalmente spoiler.

Depois de muito tempo sem vir aqui, me sinto feliz de voltar com esta narrativa “nas mãos”. E gostaria muito de ouvir a opinião de vocês a respeito, assim que assistirem este filme de Spike Jonze em parceria com Joaquin Phoenix.

“Ela”, escrito e dirigido pelo próprio Jonze, conta um período da vida de um rapaz que vive numa época de tecnologia altamente avançada. Recém separado da esposa, Theodore (Joaquin Phoenix) resolve adquirir um programa de inteligência artificial que lhe proporcionará uma namorada virtual. A narrativa mostra este dito relacionamento e vamos descobrindo mais sobre este homem e como ele se relaciona com o mundo. Destaque mais uma vez para atuação de Joaquin Phoenix que sempre nos traz a perfeição do homem comum que beira o patético, quer seja um imperador romano (Comodus/ Gladiador), ou um poeta bêbado (Johnny Cash/ Johnny & June) ou um homem livre e quase bestial (Freddie Quell/ O mestre).

A fotografia muito bem feita, os cenários e locações grandiosos e assépticos, os sons comedidos e abafados, os rostos limpos e pálidos dos personagens, tudo costurado por uma música lindamente robotizada têm feito deste drama um engodo para as mentes menos avisadas que o tomam por “uma bela estória romântica”. E é este engano que tem me assustado ao ver os comentários de espectadores nas redes sociais e fóruns de discussões. Geralmente, me isento em “ditar” uma leitura a meus leitores-cinéfilos, mas desta vez acho que vou provocá-los um pouco com uma opinião um tanto mais irredutível: não, não é uma estória bela, a não ser pela estética perfeita e higienizada. E não, não é romântica. Se posso colocar um primeiro adjetivo real a ele, diria que é no mínimo perturbador.

Se você defende o relacionamento entre Theodore e Samantha como algo normal, há de concordar comigo que ele estava de certo modo fadado e programado – não predestinado – a acabar. O programa inteligente capta e reelabora maneiras com as quais Samantha vai se relacionando com ele, se ajustando ao modo d’ele pensar e viver. E pelo menos para mim, a narrativa é circular: Theodore volta no ponto onde parou, com a mesma acusação feita por sua ex esposa pairando sobre sua cabeça, ou seja, ele tem dificuldades para se relacionar.

Theodore, um homem (des)sensibilizado, está instalado num mundo moderno que parece frio demais para ele, mas ao mesmo tempo as coisas que tornam este mundo frio e calculado são as únicas que vão acolhê-lo. Theodore é sozinho e está sozinho. Seus olhos hipnotizados diante da tela do computador de seu escritório não revelam nada a não ser formas lineares de vidas inventadas em cartas. Seu trabalho é escrever cartas – enviando-as em papel e envelope, como uma moda vintage – para pessoas que querem se comunicar com entes queridos e pagam por este serviço. Ele cria relações artificiais para as pessoas que acreditam estar vivendo algo real somente porque “escrevem” cartas e as enviam.

Toda relação humana neste filme parece ter de ser verbalizada, autenticada e divulgada através de uma máquina. As poucas relações reais são casais que se conheceram através de uma máquina. E as que não deram certo foram claramente subornadas por falta de diálogo real. As pessoas parecem não ter paciência ou perderam a habilidade de se colocar dentro de uma relação, de se expressar. Percebi também que não há desespero nisso e sim somente uma imensa preguiça disfarçada de “é a vida, eu sou assim, me aceite como sou”. Um egoísmo conformista que já passou do ponto de ser agressivo ou absurdo, é sim, algo natural nesta sociedade lotada de gente solitária e de vida estável e confortável. As pessoas aprenderam com exímio a serem chatas e enfadonhas.

A medida em que o namoro entre Theodore e Samantha se desenrola diante da tela, os absurdos crescem em número e intensidade exponenciais. Desde um piquenique entre um casal de amigos reais que inclui Theodore e sua “namorada” em mini pad, acomodada  em cima da toalha xadrez na grama, à vontade de fazer sexo com um corpo real até a “traição” de Samantha com mais de 8.000 usuários.

A meu ver, não sei qual dos absurdos me incomodou mais, porém, destaco a do sexo com um corpo real. A solução para o dilema foi proposto por Samantha que contratou uma garota real que pertence a um grupo de pessoas que admira relacionamentos “bonitos” e “verdadeiros” entre humanos e programas inteligentes. Ela traz seu corpo para ser usado como se fosse o de Samantha somente para sentir o calor de uma relação real.

As relações reais são robotizadas, esfriadas o tempo todo. A amiga de Theodore também termina um casamento e inicia um romance com um programa inteligente. A todo tempo o espectador pode achar que, em algum momento, eles irão ficar juntos afinal – e já tentaram isso no passado – mas somente percebe que eles se consolam quando os programas “vão embora”. Há uma insinuação de que poderão se juntar ao final do filme e não veremos. Mas eu não acredito nisso. Acho que eles jamais se reconhecerão como possíveis amantes que poderiam se encontrar dentro de suas bolhas egoísticamente anestesiadas.

O filme é muito bem feito, sutilmente desconfortável e interpretações delicadamente contudentes. E realmente o roteiro original de Jonze merece prêmios e acho que até sua direção os mereceria. Ao dizer que ele não é nada romântico e que a estorinha não é bela, penso: será que já estou mesmo entrando no rol dos “velhos” que já não têm fôlego para acompanhar o avanço relâmpago das tecnologias, não vendo romantismo nenhum em se namorar um “ser” virtual, enquanto os “jovens” vêm isso não somente como romântico, mas possível. Ou será que eu pertenço a uma espécie em extinção que ainda acha que o propósito em estarmos neste planeta é aprendermos a conviver uns com os outros e não fugir disso usando máquinas, pois é nos relacionando que aprendemos mais sobre nós mesmos? “Ela” me assustou com tanta semelhança com “um mundo” em que talvez já estamos inseridos, em algum nível.

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Ana Al Izdihar