Cultura saturada By João Grando / Share 0 Tweet Maloqueiro x nerd; criança x adulto; sacrifício x vontade: substitua o X do enfrentamento (vs.) pelo da multiplicação. X: vezes em vez de versus O X é uma letra especial. Todas as letras são importantes, mas se todas fossem especiais (papo de mãe) nenhuma seria (papo óbvio). Mas o X é. O X, além de letra, além do som de ch/ cs/ z/ ss/ s em língua portuguesa e “écs” em língua inglesa, além de outros na língua inglesa e tantos outros em tantas outras línguas, é usado para marcar coisas (tudo no “c” no vestibular, tesouro em ilha deserta, erro em jogo dos sete erros, o coração dos baixinhos pela da Xuxa) e para anular coisas (o que não deixa de ser marcar); ele é também o 10 em números romanos e pode assumir a cara de qualquer número na matemática ou qualquer coisa em qualquer outra coisa, como numa DR a cara de uma hipotética ameaçadora piriguetti “e se você conhecesse uma pessoa X e ela o chamasse para jantar?” ou “e se pessoa X vai à festa e pessoa Y não gosta?” ou para fins de indiretas, como “se pessoa X não paga, não pode comer cajuzinho”. Claro que nestas últimas valias ganha concorrência e/ou apoio de seu co-irmão Y e também com o N nalguns outros casos, mas isso não vem ao caso. O X é também um cromossomo obrigatório no ser humano, que com um pouco de Y fica mais peludo, mais objetivo e passa a gostar mais de futebol, entre outras coisas. O X significa também multiplicação (e isso ele não divide com ninguém, sendo que para seu oposto tiveram de arranjar um símbolo novo ou a barra, que, ainda que se caracterizem como caracteres, não integram o alfabeto, não têm para si uma seção nos mais diferentes tipos de dicionários destinados às línguas de alfabeto latino). E o X significa versus, substitui o “vs.”, como Grêmio 5 x 0 Palmeiras, por exemplo, ou EUA x URSS, por um outro exemplo. Porém um X de multiplicação não se diferencia do de enfrentamento. Aliás, na sua fórmula minúscula, que é a para este fim utilizada, analise os dois seguintes: x x Seria possível dizer qual é de multiplicação e qual é de vs. (que não deixa de ser uma divisão)? Não, não é? E se não, então cada um acha o que quer. Misturar é mais do que tudo que existe O número de Shannon, que leva o sobrenome do pai, Claude Elwood Shannon, que tem também como filho a teoria da informação, designa estimativamente o nº de partidas possíveis no xadrez: 10120. Dez seguido de uma dúzia de dezenas de zero. Queres deixar a maxila inferior sem resistência à gravidade? O nº de átomos no universo é estimado entre 4 x (olha o x aí, gente!) 1079 e 1081. Número de embates possíveis no xadrez: 10 000 000 000 000 000 000 000 000 000 000 000 000 000 000 000 000 000 000 000 000 000 000 000 000 000 000 000 000 000 000 000 000 000 000 000 000 000 000 000 000. Número de átomos no universo: 10 000 000 000 000 000 000 000 000 000 000 000 000 000 000 000 000 000 000 000 000 000 000 000 000 000 000 000. Sobra 1 000 000 000 000 000 000 000 000 000 000 000 000 000 000 000 para o xadrez. Antes de fecharam o queixo para abri-lo novamente, porém com um palavrão seguido ou substituído por um brado de absurdo, talvez não sem ironia, lembro-vos: qualquer movimento diferente a qualquer tempo já caracteriza uma partida nova. Repetir uma partida seria o mesmo que vencer a Mega-Sena tendo de escolher a seqüência de sorteio dos números, com a proporção evidentemente adaptada. Falando em evidentemente, evidentemente que o número de Shannon já foi e é discutido, mas novamente aqui não é o caso: outras matérias são 103 x mais eficazes que este texto para lhes informar sobre o assunto. O caso é: se um tabuleirinho de 8 x 8 apelar para as possibilidades pode nada mais nada menos que disputar com o número de moléculas no universo. Isso dimensiona o imensurável tamanho das possibilidades. Elas são sempre mais numerosas (porque inúmeras) que as realizações. As possibilidades se encontram num plano permissivo, que desconhece limites; já as realizações ocupam um espaço exclusivo, ficam lado a lado, duas não podem ocupar o mesmo espaço. As realizações somam-se; as possibilidades se multiplicam. Porquanto existem tantos rostos diferentes. Por isso nós somos 6 bilhões e já fomos trilhões e somos no máximo parecidos uns com os outros. Eleru criança x adulto maloqueiro x nerd perua x pivete prazer x obrigação sacrifício x vontade animal x máquina verdade x mentira O exercício é simples: vezes em vez de versus. Em vez de opô-los (ou quem sabe “ao invés”, já que semanticamente talvez aqui tenhamos uma inversão), multiplique-os. Em princípio num campo ideal, do contrário cairíamos no argumento da androginia e rebatê-lo-íamos com o da miscigenação, sem perceber que a metáfora o é para simbolizar, e como tal não seria em si mesma já a prática. Ou ao menos num campo não biológico, embora o exemplo do vira-latas venha reforçar este conceito e esteja embutido no carisma dele. Ou ao menos eliminemos alguns casos, porque nada vale para tudo, ainda para evitar o exemplo da androginia (que pode ainda ser descartado como porção negativa da mistura, uma vez que se nos isentarmos das relações sexuais e sociais (conseqüentes da sexual, neste caso), a androginia é uma interessante ferramenta estética, inclusive numa esfera anatômica – vide Michelangelo). Não cinzas Há um escol e uma escória. E um nível intermediário entre ambos. Se fosse numa esfera financeira, a elite, a ralé e a classe média. A classe média quer ser escol(hida), quer ser elite, mas tem alguns pontos que lhe impossibilitam. Do mesmo modo, não tem a coragem e/ ou o desprendimento que tem compulsoriamente a escória, a ralé, porque já tem a classe média algumas coisas garantidas. E assim não é nem um nem outro, é incompleta em ambos. Evidentemente isso é muito mais relativo, mas estou aqui a exemplificar, e no tal campo ideal pode-se apostar nesta clareza objetiva. Não que um seja melhor que outro, mas se compreende nisso uma evolução sob ótica de um aspecto específico: como o financeiro, do pobre ao rico; ou o crítico, do funk a Bach; ou físico, do débil ao forte. Assim como há o ignorante, há o intelectual e há o bem-informado entre ambos. Dado o aviso, voltemos: a ignorância dá ao ignorante alguns méritos inalcançáveis pelos inteligentes, que por sua vez não são alcançados pelos bem-informados, que, contudo, também não alcançam os benefícios ingênuos da ignorância. Assim a proposta é criar um elo direto entre um extremo e outro e desprezar o que for médio. Porque o médio é um acúmulo de medos. Em vez de cortar as maiores e menores notas, cortemos as notas médias e fiquemos com a multiplicação dos extremos: isso gera um meio-termo, um caminho do meio, mas diferente da média em si mesmo. Uma ponte direta entre o brucutu e o poeta, sem precisar do apenas educado no meio. A síntese dos opostos, o playboy traficante. A arte erudita reportando-se à cultura em massa, sacrificar-se pelo prazer. A certeza da multiplicação O resultado da mistura é então uma terceira coisa. 2 + 3 não é 23, é 5 (pode conferir na calculadora). "Nenhum nem outro" pode ser um modo de ser "os dois ao mesmo tempo". Ou um modo de transitar pelos dois ao mesmo tempo. Ser 44 entre o 8 e o 80 ou poder ir do 8 ao 80. Mas não é caso para “ou”. A questão é multiplicar, misturar, e aí podemos pôr mais um terceiro elemento na receita ou tantos outros quaisquer, e sempre que surgir a dúvida da escolha responder com a certeza de uma soma (que não é soma, é multiplicação). E se os opostos podem se combinar, qualquer coisa pode se combinar. E qualquer coisa é muito. Há muito que combinar. Tudo combina. Não há final. Se parece haver, põe mais uma letra. Tais como as senhas geradas quando se esquece as senhas, tipo #j8R2LG?, que servem de tinyurl, que servem de palavrão para a Turma da Mônica. A multiplicidade é, na prática, infinita, o que torna tudo que for combinável assim também. Reciclagem Há muita porcaria na televisão (fala-se tanto isso e com tamanha empatia entre os interlocutores que tal frase ganhou status de verdade). E não somente. Na literatura, no cinema, na filosofia, poesia e você já entendeu. Em tudo, em suma. E teoricamente tais porcarias se associam naturalmente à perda na sua conotação mais popular, a negativa (pois sim, a positiva há e aos tantos: imagine que perda pode significar perda do medo etc.): neste caso, a perda de tempo. Não há tempo perdido. Todo tempo é rigorosamente utilizado. E em tempos (há tempos) de sustentabilidade, de reciclagem, não devemos pôr nada fora. “Sai da minha abra sai pra lá” é justamente o que eu gostaria de dizer àquela música, se se pudesse dizer alguma coisa a uma música. Mas talvez algum acorde ali, alguma raiva da música, alguma lembrança da Mônica Carvalho no clipe me inspire alguma expressão. Nem que seja só para contrariar ou só para descontrair. Hoje o fio da história é cada vez mais fino ou as informações por serem numerosas deixam a história cada vez mais pesada. Não importa para qual lado da metáfora deslizarmos, uma coisa se sabe: a vida, hoje, é delicada. Delicada mais para sensível do que para frágil. As diferenças são cada vez mais sutis. E coisas sutis multiplicadas têm sua sutileza multiplicada. Um exagero de sutileza. Aliás, sutileza x exagero. As coincidências fazem parte do desempenho serial (abc, abb, acb, bbc, bcc… uma hora ou outra chega o aaa, o bbb, o ccc). E com base nisso nós chegamos onde estamos e encontraremos algo aonde vamos. As coincidências são pontos nevrálgicos dos caminhos tomados e executados na vida, constituídos como um bloco único, um bloco com espaço interno, o que está mais para uma rede. Você encontra a sua velha paixão secreta bem quando pensa na sua velha paixão secreta. O destino, quando dele lembramos, é uma coincidência. A nossa história acontece com o condicionamento de uma série ampla de fatores para que aconteça uma coincidência (como a de a bola ir justamente num lugar inalcançável pelo goleiro, como encostar uma boca justamente numa outra boca e justamente de quem você queria encostar). Há uma frase atribuída na internet ao grande Wittgenstein que diz o seguinte: "filosofar é como tentar descobrir o segredo de um cofre: cada pequeno ajuste no mecanismo parece levar a nada. Apenas quando tudo entra no lugar a porta se abre." A espera pela coincidência não é à toa. É a construção dela. Cada estribilho funkeiro, cada episódio de Malhação, cada armação da Flora contra a Donatela podem colaborar para sua vida. Pois podemos combinar tudo, os inimigos, os amigos, o bom e o ruim: a raça humana e suas descobertas têm compatibilidade genética e podem gerar descendentes férteis. Temos: x x x Isso pode ser 30, claro. Pode ser 666. Pode ser uma parte de um verso da música da Xuxa, repito. Pode ser também x vs. x, o que também é vs. vs. vs., ou vezes vs. vezes, ou vezes vs. versus, ou versus vs. vezes, ou incógnita vezes 10, ou dez de outubro de dois mil e dez, ou incógnita numérica vs. incógnita textual, ou três algarismos desconhecidos iguais ou finalmente o esperado etc. a fim de que eu não fique ad infinitum (o que pode significar a tarde toda) aqui. E se estes três x e eu poderíamos ficar aqui a tarde toda, o que podemos com todas as coisas do mundo com todo o tempo do mundo (que pode ser uma vida toda)? Tudo é 0 ou 1. Tudo cabe no mesmo lugar. É como imaginar um botão que seja de volume e tunning ao mesmo tempo.