RONALDO é ready-made


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O fenômeno RONALDO. A palavra, não o jogador.

É a hora certa de falar dele: do fenômeno. Do fenômeno que teve sua intensidade máxima em maio e junho: o fenômeno RONALDO. Não o jogador, mas a palavra em si, a palavra despida de seu conteúdo. É a hora certa de falar posto que ele está morrendo, morre agora mesmo na medida em que cai nas hashtags do Twitter, na medida em que Zina deixa de ser um desconhecido personagem de vídeo de Youtube e ganha nome, profere outras falas, aparece com o cabelo mais comprido (exibido no programa Pânico, da Rede TV! (que se junta ao Yahoo! em levar exclamação já inserida no nome) no domingo último, ou simplesmente dia 21 (de junho, a propósito)). RONALDO (geralmente grafado em maiúsculas por aí) virou resposta para tudo, virou um substituto mais útil (ou aplicável) que a palavra coisa, dado que substitui não somente palavras, mas respostas, frases inteiras.

RONALDO é um ready-made.

(Ready-made é basicamente (bem basicamente) uma jogada artística iniciada no início do século passado (o XX) pelo francês Marcel Duchamp, que consiste em tirar o objeto de seu contexto original e recolocá-lo sob uma aura que lhe dê status de obra de arte, como numa exposição, desprezando assim as então propriedades históricas de feitura e valorização de uma obra artística, como o material, a ação manual do artista; o ready-made fez realmente uma curva na história da arte e sua importância (para além deste choque) está mais na jogada em si que na conseqüência da re-contextualização do objeto, ou seja, mais no vazio, no nonsense do que numa utilização metafórica que se utilize de sua carga simbólica intrínseca.)

Em 1950, André Malraux disse “Em arte somos os primeiros a herdar a terra toda… Acidentes danificam e o Tempo transforma, mas quem escolhe somos nós”. A arte antecipa as coisas. A “morte” (aspas em destaque) pela qual passou a arte (e se falarmos em morte talvez possamos chamar a contemporaneidade sobrevida ou vida eterna) passam agora o jornalismo (“o jornalismo morreu?”), a televisão, o comércio, a sociedade. Assim como coisas essencialmente inquestionáveis, como a medicina, ou, menos especificamente, a ciência, passarão também – atingirão um grau de relatividade que lhes tirará a possibilidade de ser universal, transformando-se em mais uma opção dentre outras: porque tudo isso não deixar de ser a morte (ou a crise) do certo, do melhor, do bonito, da resposta.

Voltando ao assunto: do mesmo modo que as subversões figurativas da passagem do século retrasado para o passado soavam terríveis e hoje são usadas de modo diametralmente oposto nos meios mais populares (como ursinhos de pelúcia e ilustrações), a sistemática básica do pós-modernismo (até pouco tempo atrás hermética pela preguiça e/ ou desinteresse do público) agora começa a ser (ou já é) aplicada também nos meios mais populares.

(Antes de falar em pós-modernismo, quero deixar bem claro que, em se tratando do meio (e conseqüentemente por questões de espaço e público, e então destinação), não me aprofundarei criticamente nestes conceitos e usá-los-ei de modo básico, bem básico.)

O pós-modernismo popularizarou-se. O humor atinge níveis abstratos, onde a graça está em não fazer sentido (e isso é no nível da popularização da coisa, pois a vanguarda eu me lembro muito bem de quando iniciou, pois eu a presenciei no meu tempo de escola). Grosso modo: “nada a ver” [sic] tornou-se um modo de fazer humor, tornou-se uma frase acompanhada por risadas. RONALDO não tem nada que ver com o Ronaldo em si, e, embora a voz meio nasalada meio infantil soe estranha na cara de mau do Zina e surpreenda ao aparecer após alguns segundos de silêncio e olhar matador, não deve em nada a coisas como o cacete_de_agulha, ou o famoso e injusto sanduíche-íche, ou o surpreendente astronauta: é o estranhamento que gera o humor (tal quais muitos recursos usados por Will Ferrel e sua trupe).

É um humor de invasão, de interferência: temos apreendida e aprendida uma sistemática de geração de ídolos, tratando como tais personalidades que não encarnam nenhuma excepcionalidade, ou, quando encarnam, o são não pelo mérito que as elevou como tais, mas pelo status já adquirido. O recurso de explorar a imagem que tornou Che um ídolo, por exemplo. O Adnet na MTV, o rosto de Susan Boyle, os filmes com caras coladas à PinPix (e aí as pessoas comuns se juntam aos ídolos num plano twitteriano, como disse a capa da Time em 2006, chamando “you” a personalidade do ano), @vitorfasano, Caetano cantando “(…) por isso essa força (…)” e mergulhando na força (ou o que seja) da gravidade: trata-se o presente como um passado fantasmagórico, um “museu de grandes novidades”, um limbo onde a imagem da personalidade encontra-se entre humano e coisa (zapping, rostos gigantes em outdoors, miniaturas no Twitter e aquele blá, blá, blá todo): uma grande base de dados, na qual as coisas se misturam sem distinção, o recente, o antigo e o antiguíssimo, o erudito e o popular: uma vala comum disponível para consulta (e no caso do Pânico, e da idiotia geral que toma conta do mundo, para servir de piada). E o que é contemporâneo cai também numa vala sem dono, e aí a reblogagem e sites como tumblr. e we♥it falam (mostram) por mim.

O mérito está no olhar e não no objeto original – a imitação vale mais que o imitado. É como uma pintura que é igual a uma foto e por isso mesmo é valiosa, ou como uma foto de um objeto que vale mais (em vários sentidos) que o objeto.

Acreditem-me (se quiserem), isso que o Pânico faz em forma de piada está muito próximo da poética pós-moderna, de obras como as de figurões como Jasper Johns e Andy Wharol, o que lhes confere (a estes últimos) o epíteto de profetas – para muito além dos quinze minutos de fama (quase impossível não cair no clichê de acomodar Andy e o quarto de hora sob holofotes no mesmo parágrafo). Ou mesmo não é tão diferente da fotografia do fim do século passado, que apesar de figurativa tem um viés abstrato, como vemos em Hiroshi Sugimoto.

Àqueles (provavelmente poucos, talvez pouquíssimos, talvez nenhuns) que se irritarem com o “básico, bem básico” e, principalmente, com sua depuração neste texto, invoco o kitsch de Greenberg, desprendido de sua datação moderna perecida, para mostrar, através de sua essência, que a arte sempre escapa do normal, e quando não escapa é porque tem de se virar para encontrar um jeito de escapar (e para quem quiser se aprofundar leia o primordial texto “À Margem”, de Lorenzo Mammì). Acontece com a arte o mesmo que com algumas personalidades: suas propriedades são exploradas por um viés que não o do mérito original que as destacou, mas por propriedades “achadas” devido ao status que atingiram (como dizer, a partir da Palma de Ouro, que Elefante, de Gus Van Sant, é bom por causa de seu roteiro, ou que as Marilyns de Andy são boas por causa de suas propriedades visuais (e há aos montes por aí se auto-retratando tal e qual em vista deste valor)). E talvez fazendo o que discretamente condene, retiro do contexto o que o mesmo André de algumas linhas acima disse: que “l’art est un anti-destin”, que “tout art est une révolte contre le destin de l’Homme”: há outras saídas, o caminho não segue assim tão óbvio (o hype dos anos 90 substituindo o dos 80 não pode ser tão burocrático).

Não despreze um pedaço de metal no meio da cidade, ou qualquer outra coisa que lhe puxe da garganta um “porcaria”/ “até minha filha fazia”/ “isso é um engodo” (uma certa evolução nestes três xingamentos): pode ser que seu filho consuma de alguma maneira esta linguagem (ou desta liberdade, desta rarefação) daqui a uns 20 anos. E do mesmo modo (aos pouquíssimos, talvez nenhuns) a coisa no fundo foi sempre a mesma: ainda há como fugir para um lugar onde ainda podemos conversar com o passado, onde podemos levar as coisas a sério (sem que precisemos reprimir a feliz hipótese das idiotices por alguns momentos).

RONALDO.

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João Grando