Avatar é iPhone


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É preciso cuidado ao criticar cinema. Em verdade, é preciso cuidado ao criticar qualquer coisa, mas em cinema, por ser uma arte popular (que como tal, à maneira da seleção brasileira, que possui milhões de técnicos em época de Copa, credencia falsamente toda a platéia a ser formadora de opinião) e por ser possível vítima de sua sinédoque (como julgar um filme pela sua história), é preciso cuidado e policiamento extras. Especialmente em se tratando de certos diretores já possuidores de um currículo que deveria intimidar os tomates mais ansiosos; especialmente em se tratando de filmes de grande apelo popular. É preciso saber se relacionar com o filme, entender suas limitações (não limitações artesanais, mas num sentido de destino, de objetivo) e suas propriedades.

Ou simplesmente não analisar Cameron como se analisasse Bergman; não analisar The Happening, do Shyamalan, como se fosse apenas um filme de terror ou filme catástrofe.

Isso parece (e é) óbvio. Entretanto há um disparo geral contra Avatar relativamente aos seus clichês (não que considerem o filme ruim, mas ele “é bom, apesar dos clichês”), como se James Cameron não assistisse a filme algum e tivesse sido ingênuo o bastante para apresentar aquilo tudo como original. Nota-se que a ingenuidade nestes casos está no lado errado, e pertence verdadeiramente a quem lança tais disparos: apontar clichês é em si um clichê.

Uma vez o critico Luiz Carlos Merten disse que outro crítico dissera que só há dois modos de filmar um clichê: ou sendo irônico ou o filmando da melhor forma possível. Esta opção é bem menos usada que aquela, já que as paródias são por excelência a ironia do clichê e vem sendo usadas (sem muita sutileza) como recurso em muitas das comédias americanas. Não contrariando tal máxima aqui apócrifa, Cameron optou por combinar os clichês e usar o que lhe mais interessa deles, por apropriar-se “(…) de todos [eles] para reapresentá-los revigorados, sob dimensão mítica,” diz Tatiana Monassa, que complementa “sua narrativa se apresenta, como sempre, absoluta, simultaneamente síntese de tudo o que a precedeu e origem para tudo que a sucederá. E, num paradoxo desconcertante, pretendendo-se também única e insuperável, quase ignorante de todo o entorno com o qual supostamente estaria em diálogo”.

Tsu’Tey, aparentemente uma versão azul e de orelhas pontiagudas que mescla um pouco do Caledon ‘Cal’ Hockley, de Titanic, ou o Bodhi (Patrick Swayze), de Point Break (ou qualquer outra coisa parecida com um capitão de time de futebol americano que perde lugar – e às vezes a garota – para o novato), contraria a tendência de seu clichê e combina-se a outro (Val Kilmer e Tom Cruise batendo as mãos em Top Gun) para se unir ao protagonista e humildemente tomar sua posição acessória – mas antes disso se comporta como um ser humano qualquer poderia ter se comportado em qualquer época, apontando que os clichês do cinema já são representações da vida real desde sempre.

Do mesmo modo, focando em seu teor de originalidade, os elogios dados aos efeitos visuais e as criações surgidas dele vem acompanhadas de falácias como “criaturas jamais imaginadas”. Claro que já foram imaginadas coisas do tipo antes. No campo da imaginação tudo é muito rápido, fértil; o planeta Pandora não podia ser mais referencial: para além de ser um mundo à nossa (quase) imagem e semelhança, os elementos que o complementam sempre podem encontrar eco em algo da cultura pop ou erudita (os aspectos felinos à Thundercats ou a relva reagindo com brilhos aos passos à Fern Gully – para citar os exemplos mais infantis), até mesmo pela saturação de conteúdo existente.
Qualquer um imagina mundos assim (ou mundos muito mais sofisticados). Talvez não qualquer um, mas muita gente criativa deve se sentir ofendida ao ouvir coisas do tipo.

A criação imagética de Cameron também é clichê. E também o é propositalmente. E nisso ela se alia à história: o roteiro do filme está para os roteiros de Hollywood assim como os Na’Vi estão para a raça humana: uma re-invenção utópica, mais pura e espetacular. O bom selvagem de Rousseau com um verniz extraterrestre que o proteja da incredulidade e assim o possibilite.

panthro

Ainda que esta seja a tecnologia mais avançada para criações artificiais usada até hoje, ela falha (como falhará sempre) na pretensiosa tentativa de se fazer efetivamente verossímil. Eu não creio no movimento daqueles cavalos de seis patas; a textura da pele dos Na’Vi pode beirar um limite da tecnologia, mas não acreditaria neles como criaturas reais, como se pudesse ver (materialmente falando) um deles em minha frente. Há algo nos movimentos que ainda soa videogame, posto que, no fundo, sempre será uma criação matemática, sempre terá algo de esquemático que não alcança a complexa fluidez da imagem e movimento reais.

Entretanto a força do cinema definitivamente não está na criatividade (dado que o cinema em si já é uma composição de artes mais puras (a pureza do cinema, que residiria na montagem, vem antes na música, na literatura)) ou no realismo (dado que o cinema é antes de tudo um pacto com o espectador que acredita primeiro opticamente na ilusão de movimento, e depois idealmente na narrativa): a força do cinema está na realização e na comunhão (não à toa a mise-em-scène é elemento tão valioso para os críticos; não à toa as láureas e tomates recaem geralmente sobre os diretores).

E nisso, considerando toda sua complexidade (produção, direção, tecnologia, divulgação etc.), James Cameron é um mestre.

Cameron abusa dos truques fundamentais que fazem astros que na vida real muitas vezes não passam de playboys arrogantes tornarem-se heróis humildes e puros: o jeito malandro de Michelle Rodriguez ganha um tom família, quase um musical preto e branco, quase uma gincana da Malhação – e quem é mau é mala, é repugnante, ao estilo ator global que faz antagonista da novela das oito apanha na rua: no cinema clássico, gorilas gigantes e loiras podem se apaixonar e acreditamos nisso, acreditamos conceitualmente mais nisso do que em paixões da vida real.

“Não se fabrica um clássico”, assim pensava ao desenrolar da sessão. Porém era uma questão de escolha pessoal: não me encantaram (e ainda não encantam) as opções estéticas do filme – mas se pensar nele num contexto em que caibam seus outros elementos, é inegável sua já anunciada importância. Cameron quis fabricar um clássico, não apenas um filme da melhor maneira possível, ou seja, planejou o filme em todos os seus aspectos (age também como produtor e não somente diretor) para que fosse um clássico – e obteve sucesso: Avatar fatalmente constará em qualquer menção ao cinema desta nossa época e por aspectos diversos, que excedem a projeção em si. E se ele pensou o filme assim, assim devemos o ver.

E quando falo em filmes desta nossa época, destes anos 00, e vêem-me à cabeça Paranoid Park, The Happening, Le Fils, King Kong, Inglorious Bastards, Camelos também choram, Dare mo Shiranai, Um Filme Falado, La Mala Educación, Femme Fatale, Brockback Mountain, Before Sunset, No Country for Old Men entre tantos outros que sintetizam a década fica estranho posicionar Avatar ao lado deles, compará-los pelos mesmos critérios, até mesmo porque o upgrade na ilusão induzida pelos óculos na fotografia de Avatar nos tira da posição de apenas observadores – é como dançar uma música em vez de ouvi-la, incluindo a parte pejorativa do exemplo.

Cabe lembrar que o diretor, nas palavras de Luiz Carlos Oliveira Jr., “(…) aproveita para alertar os cinéfilos de que o cinema é só uma fração de segundo na duração da história da humanidade”. Os tão notados clichês presentes servem quase como uma indexação do cinema, como a placa com um casal de Homo Sapiens desenhada pela Linda Salzman, então esposa de Carl Sagan (nepotismo sideral?), enviada pelas Pioneer 10 e 11: ele quer ser um modelo, quer substituir todos os outros filmes de aventura, ficção científica, romance etc.: ele, como um iPhone, quer convergir todas as funções, suprir tudo o que os outros filmes supririam. E como o smartphone da Apple soube gerar intencionalmente expectativas para se tornar um fenômeno mesmo antes da estréia.

O cinema 3D não é cinema, é um espetáculo. Um espetáculo que talvez não esteja nem aí para o cinema.

E assim se relaciona diretamente com seu público, com a experiência de seu público. E sabe, neste caso de Avatar, bem o que lhes quer falar.

A banalizada expressão “see you” (a versão da língua inglesa para “tudo bem?” em termos de abstração da mensagem original) é recolocada, potencializada pelo seu significado literal: Avatar mostra aos milhões de fantasiados de publicitários que assistem a suas sessões que, muito mais do que salvar o nosso planeta (ainda que haja mais melancolia do que esperança no futuro apontado), precisamos de um contato com a essência das coisas.

(I) see you, nada mais que um “falow” ou “tchau” para os humanos, para o povo Na’Vi toma outra dimensão: é uma expressão que celebra a profundidade que o ato de ver pode ter. Ver é mais do que simplesmente o acontecimento do sentido: é algo resultante de esforço, é algo que se atinge com a essencialidade do ato – viver no planeta é mais do que simplesmente estar nele, do que consumi-lo. Ver é mais do que ver.

 

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joao~grando

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João Grando