Existencianálise By Levi Leonel de Souza / Share 0 Tweet Diz um personagem da peça teatral Entre quatro paredes: “O inferno são os outros”. Parafraseando-o, eu diria: sem os outros não há distresse; o distresse são os outros. Diz um personagem da peça teatral Entre quatro paredes1: “O inferno são os outros”. Parafraseando-o, eu diria: sem os outros não há distresse; o distresse são os outros. Levi Leonel de Souza Da Série: Existencianálise2 É muito divulgado, na atualidade, o efeito deletério do distresse (mau-estresse) à saúde física, emocional e social, listando-se seus males mais comuns: a) paralisia das funções intelectuais, reduzindo a resposta mental a testes, leituras, estudos, aprendizagem, conação e entendimento; b) dificuldades emocionais, com irritabilidade, reatividade, angústias variadas, raiva sem sentido, depressão, obsessão; c) problemas de relacionamento, com distúrbios familiares, sociais e do trabalho; d) dificuldades alimentares, com obesidade, doenças de pele, dos órgãos, da musculatura, das articulações, da respiração, da digestão, dos intestinos, da anemia e outros menos evidentes ou divulgados. Além desses devemos chamar a atenção para aspectos que melhor seria nomearmos como existenciais, pois gravitam pelas várias órbitas acima citadas, têm origem em dificuldades ambientais/familiares ainda no princípio da infância e se apresentam acentuados nas situações distressantes. Para não alongarmos, talvez baste dizer que existenciais são aquelas doenças que não possuem causa médica demonstrável, provável ou aqueles casos em que os exames mais especializados apontam para uma saúde orgânica boa, contradizendo o sentimento da pessoa de que está efetivamente doente, porque esta olha para si e se vê doente! É bom saber que os exames clínicos visuais, laboratoriais e perguntas iniciais confirmam a presença de uma doença, seja ela uma alergia, hérnias discais, distúrbios de órgãos etc. Um dos aspectos de nossa tese de trabalho é que as pessoas que se desenvolvem de criança em adulto com problemas de enlace entre corpo e consciência3, se tornam cronicamente doentes e mais facilmente vítimas do mau-estresse. Isso se dá assim, porque desde seus primeiros meses de vida houve uma descontinuidade da atmosfera psíquica, provisão de alimento emocional e dos cuidados sócio-familiares, impedindo a pessoa de realmente habitar seu corpo e com isso deixando de ser proprietária de suas possessões orgânicas. Acaba, assim, por deixar o corpo abandonado, desabitado, desorganizado, desvitalizado, mantendo-o por um fio e sem imunização psíquica. Aí se dá um fenômeno de apropriação do corpo e da pessoa pelos grupos que estão a sua volta, como o resultado de sua não-apropriação de si-mesma por si-mesma. Em outras palavras: como a pessoa não habita sua existência é obrigada a adotar, sem nenhuma crítica pessoal, as regras, costumes e tradições. Tais regras vêm de fora, jamais foram assimiladas e tornadas corpo, a parte existencial do sujeito que é contraparte orgânica. Outro modo de se criar um verdadeiro delírio corporal (corpose) é o cuidado sócio-familiar ser tão invasivo que no lugar da criança dentro de seu corpo, há uma ou mais pessoas “habitando” o corpo da criança e esta sendo afastada do centro da vida; fica à margem, assistindo a vida acontecer no seu corpo, mas não pode participar do movimento de vida que lá se manifesta. Ora, tal pessoa vai para uma vida onde o trabalho não é a natural evolução do brinquedo infantil em atividade profissional adulta, o amor não surge da relação (é acidental) e os sentimentos atrapalham ao invés de ajudar. Ela é obrigada a fundar-se quase que tão somente como um eu orgânico, por não ter como sentir-se viva a partir do sentimento de existir corporalmente. Na verdade, se ela existir corporalmente, já podemos falar em saúde existencial boa. Mas aqui não é o caso. O organismo vai se tornando delirantemente vivo. Tem vida própria, uma vez que a pessoa não o torna sua propriedade, simplesmente por não saber como fazê-lo. O corpo biológico sonha pesadelos (doenças) e a pessoa assiste estupefata ou desanimada, suas dores, sem saber de onde vieram e qual o seu sentido. O mau-estresse (distresse) e o bom-estresse (eustresse4) Parte do que foi dito pode ser resumido assim: o mau-estresse é produto de um estresse crônico, ou seja, uma resposta inadequada a situações que exigem mais do que a pessoa pode suportar, em termos de intensidade, continuidade, bem como de qualidade. E a nossa tese é que se estressam mais aqueles que já possuem uma formação existencial permissora de reações estressadas que surgem na mente e nas relações, mas principalmente, plasmam-se na corporeidade. Esse seria o maior contingente de estressados: os que assomam consultórios médicos variados, quase sempre necessitando de contato com muitos profissionais de saúde, simultaneamente, para dar conta de seu mistério corporal. É verdade também, que uma pessoa organizada existencialmente também está à mercê dos altos e baixos da vida, entretanto, ela emerge rápida e seguramente do caos do distresse e retoma sua vida, afetada pelo episódio apenas no que concerne a uma soma maior de experiência de vida, maneabilidade emocional e sentimento de realização. É óbvio que a pessoa saudável existencialmente se dá conta e maneja a realidade a partir da percepção das vicissitudes do viver, porém, repito, isso não a distressa. Pelo contrário faz com que ela acesse o eustresse, um sentimento de estar vivo e descansado, pronto para o desgaste obrigatório do viver. Eustresse é o nome do sentimento de ter uma vida viva, um corpo vivo, uma história pessoal viva. Terapia existencial (existencianálise) A terapia existencial do mau-estresse (distresse) começa pelo deslocamento da noção de psicoterapia para a de análise existencial. A análise existencial (existencianálise) entende o ser humano como pessoa-em-situação (em ação), constituída por seus desejos, lançada no mundo, mas sem ser um ser em si mesma. Esse adendo último, implica que o sujeito não é fundamento de si mesmo, sendo seu fundamento o mundo e o mecanismo de fazer o mundo existir. O fundamento do sujeito é seu desejo – seu desejo original. Seu fundamento está mais para o desejo de ser fundamento de si do que de fato sua consciência é seu fundamento. Se o desejo de ser é a base do ser do sujeito, então uma terapia pessoal deveria poder levar o paciente a contatar seu mais original desejo – aquele que o constitui, isto é, o desejo de ser que o enforma. Quando alguém deseja, seu próprio ser é desejo de alguma coisa, algo, situação. Isso implica dizer que seu ser é feito de desejar o mundo – é feito de mundo desejado. Esse é um modo de dizer, com Jean-Paul Sartre, que a consciência é transcendência, o sujeito é seu modo de ser, a pessoa é sua situação histórico-social – sua essência é a existência. E como a existência obrigatoriamente se dá pela corporeidade do sujeito (corpo-sujeito5), o corpo evocando a única possibilidade de existir, isso uma questão que envolve a diferenciação, ainda que teórica, entre organismo e corpo, que pede trabalho de estudo. Trabalho que se dá, já hoje, na forma de diálogos da teoria existencial de terapia pessoal com vários saberes – particularmente as disciplinas médicas. Das disciplinas médicas um dos recortes possíveis é a abordagem do corpo pela fisioterapia. Esta abordagem possibilita uma leitura existencianalítica justamente pelo quanto corporal o sujeito é em seu existir com o mundo. Nas abordagens ao corpo por meio da existencianálise é que se percebe a corporeidade como um discurso – a encarnação do discurso sócio-histórico. O fisioterapeuta trabalha sobre um corpo que não é organismo (embora sua base seja fisiológica) dando-se de modo histórico, ideológico. Como o sujeito-corpo se dá em suas existência temporal-espacial e ser pessoa é ser desejo o terapeuta corporal não toca pele e músculos e sim uma consciência. Faz contato com sonhos, expectativas, perspectivas encarnadas; sonhos estes que têm sua origem no mundo (tradições, culturas, sociabilização), e se cristalizam em pessoas-em-situações. Pensando nas várias implicações de uma leitura existencial do corpo sofrente, Vanusa Barboza, fisioterapeuta, especialista em R.P.G., pós-graduanda em acupuntura e terapeuta existencial, apresentará no próximo texto da série “Existencianálise”, uma aproximação da fisioterapia com o pensamento de Jean-Paul Sartre, especialmente no que concerne àqueles casos em que uma pessoa repete acidentes corporais que a levam à clínica fisioterápica. 1 O autor, Jean-Paul Sartre, ilustra o estado excepcional da existência humana, na peça Hui clos, que de certo modo dá continuidade aos seus estudos da obra “O ser e o nada”. 2 Pensamos que o filósofo Jean-Paul Sartre, ao usar o termo “psicanálise existencial” para se referir a sua proposta de uma análise da existência acabou por reafirmar o termo psi, o que não tem ressonância em sua obra – que fala da existência e não de psiquismo. Assim, sugerimos “existencianálise” ou “terapia existencial” no lugar de “psicanálise”; nos parece mais rigoroso, se levarmos em conta seu projeto surgido em O ser e o nada (1943). 3 Tanto o conceito de consciência, quanto de pessoa, não são, dentro da existencianálise sartriana, conceitos místicos. Isso quer dizer que não se trata de uma consciência ou pessoa pura, uma substância transcendental. Trata-se, antes de tudo de uma consciência cuja própria estrutura é constituída de valores sócio-ideológicos, portanto, sócio-linguísticos. Nada há de substancial na pessoa, a não ser sua evocação como um ser sócio-histórico. 4 Uso estresse como algo categórico, no sentido de que todo sujeito vive sob tensão e preocupação, sendo que isso é sua condição humana e até mesmo o sujeito chega a desejar o estresse; certa quantidade de adrenalina e responsabilidade só faz bem para a saúde existencial. Já o distresse é aquela situação em que a pessoa não dá conta de si mesma e passa pela angústia de não poder contar com suas forças para superar as vicissitudes do viver – nesse caso pensamos em má saúde existencial. O eustresse é um estado de saúde existencial, onde a pessoa usufrui centralidade do eu, confiança no mundo, sentimento de pertencimento a uma formação social que o engrandece e o protege e o sentimento de ser amado e de amar. Estresse é a contingência da vida; distresse é um mau estresse; eustresse é o sentimento de que a contingência existencial está sob certo domínio. 5 Vide Fenomenologia da percepção de Maurice Merleau-Ponty.