Desesperança

Douglas Ceconello, do blog Impedimento, cometeu uma obra de arte no último dia 26. Criou um texto tão significativo, grave e encharcado de humanidade para a tragédia que ocorreu em Criciúma no último domingo, que passo por cima da exigência de ineditismo do OPS, na certeza de que não serei advertido pelo deslize. Leiam porque vale a pena. Voltamos à nossa programação habitual na próxima segunda-feira. Com vocês, Douglas Ceconello:

Sempre que penso na minha velhice – isto, é claro, caso tenha a sorte de avançar pelas décadas apesar dos riscos que corro e de outros em que me coloco de forma proposital – imagino o prazer que certas atividades corriqueiras devem proporcionar e no significado que certamente adquirem no momento que se aproxima do nosso crepúsculo.

Penso, se o acaso e o organismo estiverem do meu lado, que sairia pela manhã para cuidar que o sol segue sua mesma trajetória, leria o jornal acomodado em algum lugar preferido e encontraria amigos velhotes para falar de novas coisas cotidianas, desviando olhar para pousar o sorriso nuns quadris avantajados. Após o almoço, a breve sesta precederia uma leitura macia, para não enferrujar os neurônios e dar exemplo aos netos. Como ninguém é de ferro, as tardes seriam encerradas com um trago de confraternização no boteco predileto. Depois, enfim a casa. E assim seria sempre, apenas com a interferência de algumas pequenas alterações aleatórias, indesejadas para uma pessoa metódica como a que, imagino, me tornarei. Mas esta rotina seria certa e regularmente interrompida – dessa forma, permanecendo ainda rotina – em dias de futebol, quando meu destino seria rumar para as bandas do rio.

Os torcedores idosos carregam em si um significado e um simbolismo peculiares, especialmente os que costumam freqüentar as arquibancadas. Sabemos que eles já viveram poucas e boas, têm os sentimentos calejados por desventuras extremas e vitórias edificantes. Seu amor pelo clube não está inerte, muito menos esmaecido, mas solidificado: não se entrega aos arroubos da nossa demente paixão jovem, mas carrega mais conteúdo e comprometimento. Hoje, estes torcedores são representações ainda fiéis de uma religião cada vez mais paganizada.

Como sempre, e parece que toda vez com mais freqüência, algo se quebra e foge do nosso alcance. Impossível ter uma segunda-feira normal depois de saber do que aconteceu no estádio Heriberto Hülse, no domingo, quando um senhor teve a mão amputada por tentar afastar uma bomba arremessada ao seu lado. Sua imagem incrédula, radinho ainda na outra mão, quando seu ferimento grave era amparado. Ele, que certamente já tinha seu espaço e assiduidade no estádio constrangidos pela bestialidade crescente, afirmou que não tem mais vontade de voltar ao campo. Ficou com medo, disse que só vai à Igreja, onde ainda há segurança. Talvez algum dia retorne para ver seu Criciúma, com a mesma calma e complacência que geralmente os idosos transparecem, é provável até que se acostume com o fato de faltar um pedaço do seu corpo. Mas ele nunca vai conseguir esconder a marca da selvageria, porque o que aconteceu não foi descuido ou fatalidade, teve um culpado, alguém que se multiplica incansavelmente, que não sabe respeitar nada, não nasceu para ver a beleza e acredita que uma pessoa deve ser mutilada ou destruída porque veste cores diferentes . Talvez domingo eu tenha desistido um pouco de querer avançar no tempo, de querer ser velho.

Na verdade, também estou sendo egoísta e escrevendo para aliviar o meu desconforto, pois algo muito importante parece se perder quando a cena me vem à cabeça. De fato, se ainda temos alguma dignidade, seria mais justo que nunca mais arrancássemos da retina esta imagem, e que toda vez ela se mostrasse mais cruel e dolorida.

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Milton Ribeiro