Mais uma vez, a piada da ‘loira burra’

Clichês podem até ser engraçados algumas vezes, mas, em geral, são apenas ideologia disfarçada de piada. A grande força dos clichês ideológicos – aqueles que se reproduzem a fim de perpetuar algum tipo de dominação – está em se apresentarem como verdades naturais, óbvias, incontestáveis. Engolimos a mensagem repetitiva sem perceber e, assim, vamos reforçando em nossa cultura vários preconceitos e contribuindo para preservar relações de poder, ampliar injustiças, perpetuar falta de oportunidades e exploração.

Dia desses, tropecei num clichê. Na verdade, uma peça de propaganda de uma (dizem que conceituada, mas eu duvido) marca de automóveis. Cliquei no link porque a fonte que a postou no Twitter se autodenomina “esclarecida”, “amante dos livros e do conhecimento” ou algo assim. Caí na armadilha. Era só um lugar-comum, desses que proliferam nas propagandas.

A começar pelo título, que traduz o “library” do inglês como “livraria”, o vídeo, que você vê aqui, é ruim [apenas sete pessoas em 13 mil gostaram dele, portanto, isso não é uma opinião pessoal]. Criada como uma piada – recurso sempre explorado pela propaganda -, a peça publicitária é um revival do velho, batido e, infelizmente, sempre ressuscitado clichê machista da “loira burra”. Estão ali reunidas todas as obviedades dessa quase instituição machista mundial: 1 – a loira burra, mas bonita, sexy, vestida com camiseta coladinha ao corpo, de cabelos sedosos e maquiagem bem feita; 2 – a mulher inteligente, mas feia, descabelada, mal-vestida, sem maquiagem e gorda; 3 – apenas homens ao redor (afinal, os únicos dois tipos de mulheres que povoam o imaginário machista e que lhe servem de objeto, a feia e a bonita, já foram representados). Fiz um teste com cinco colegas de trabalho. Todo mundo riu.

Nas relações cotidianas, rir não é um comportamento espontâneo. Rimos quando estamos em uma interação social em que essa reação é permitida e valorizada. Os estereótipos potencializam esse comportamento ao fornecer fórmulas prontas diante das quais não temos nenhum estranhamento ou reflexão, apenas reagimos. A forma fixa dos estereótipos congela nosso questionamento, adormece nossa crítica, simplifica o social. A loira é uma dessas formas fixas. A “família de anúncio de margarina” é outra.

Além disso, rir do outro é um exercício de poder. Nas piadas preconceituosas, em geral, rimos dos “burros”: o “português”, o “Joãozinho”, a “loira”. Quem ri está em posição superior ao objeto da piada. Embora pareça, o riso nada tem de ingênuo: ele é socialmente determinado.

Pensadores como Henry Bergson e Georges Bataille se dedicaram a estudar o riso e dizem que há nesse comportamento uma tentativa de fugir à angústia, às incertezas, à nossa impotência diante da desordem e do desconhecido. Por isso, em geral, projetamos sempre no outro as fraquezas risíveis, reforçando nossa visão de mundo, nossas crenças, nossa concepção de ordem. Em outras palavras, quando rimos do que parece “errado”, estamos, na verdade, reforçando em nós mesmos e em nossas relações o que é “certo”. Mas o certo não é neutro, é definido pelas relações sociais.

Piadas são criadas justamente para explorar esses dois aspectos: o comportamento do riso e a estrutura de poder da sociedade. A piada é a subversão de alguns aspectos da estrutura social, costuma tirar alguns elementos de seu lugar “usual”. Em algumas situações, essa subversão pode ser uma crítica, uma forma de resistência ao que a sociedade nos impõe. Nas piadas que abusam dos clichês ideológicos, trata-se de uma forma de reforçar as mensagens de coerção social.

O riso tem ainda outra função. Em seu texto Os chistes e sua relação com o inconsciente, Freud mostra que as piadas condensam uma série de ideias para a gratificação psíquica (assim como os sonhos). Por meio das piadas [no caso, aqui, de mau gosto] damos vazão a alguns de nossos desejos inconscientes de aniquilação ou exploração do outro sem sentirmos culpa, sem sofrermos a repressão social. A culpa não se manifesta porque, afinal, é apenas uma “brincadeira”. Pensando em Freud, eu diria que piadas baseadas em estereótipos que desqualificam o outro funcionam quase como uma permissão para expressar nossos instintos agressivos, para exercer sobre ele a violência simbólica.

Na publicidade, todo o processo de comunicação é elaborado para que nada disso seja percebido. A proposta é criar no espectador uma satisfação pequena e imediata e o desejo de consumir o produto que, em sua experiência, ficará sempre associado ao riso e ao prazer. E essa é a questão. O que faz da propaganda da Mercedes-Benz uma peça publicitária ruim não é apenas o abuso de clichês, de mecanismos de dominação e do mau gosto. É também o fato de não conseguir esconder todo esse processo. O uso gratuito e ineficiente do clichê é sua principal denúncia. A publicidade foi burra, desconsiderando potenciais consumidores. A verdadeira piada é que a propaganda que pretendia fazer rir tão mal produzida que, como produto, se torna risível. 
 

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Beauvoiriana (aka Literariamente)