Instantâneos Sociológicos By Beauvoiriana (aka Literariamente) / Share 0 Tweet Situações de violência – como a que aconteceu em Realengo, no Rio de Janeiro – são para o jornalismo uma grande oportunidade de ganhar espaço no debate público. Os meios de comunicação se esforçam em esmiuçar a questão sob os mais variados ângulos. Entrevistam especialistas, testemunhas, policiais e, principalmente sobreviventes – mesmo estes sendo crianças, como agora –, numa busca incessante por uma informação nova. E quase instantaneamente esse esforço se desfaz. O novo perde espaço para o comovente, a palavra contundente, os clichês na representação do sofrimento, a imagem a ser repetida centenas de vezes. Debates, artigos de opinião, exaustivas reportagens sobre o antes, o durante e o depois do fato bombardeiam nossas mentes com palavras, ideias e imagens que já ouvimos centenas de vezes e que pouco ajudam a compreender os fatos. A missão do jornalismo é engolida pelo sensacionalismo. Predominam nesse tipo de cobertura as características mais marcantes do discurso jornalístico: a tentativa de sintetizar a complexidade das relações sociais em explicações simples. Fatos complexos fogem à lógica que sustenta a narrativa jornalística, que se baseia em informar quem fez o que, como, onde, quando e por quê. É essa última questão abre espaço para as explicações ideológicas que classificam, nomeiam e excluem o responsável pelo crime da sociedade. E que transformam a sociedade que, se em outras situações é quase sempre retratada como anômica, problemática e desestruturada, em pura e frágil diante da ameaça encarnada por alguns poucos indivíduos. Wellington Menezes de Oliveira, o homem de 24 anos que cometeu os assassinatos na escola municipal Tasso de Oliveira, recebeu na mídia uma infinidade de adjetivos que supostamente tentavam “explicar” quem era ele e por que realizou disparos contra crianças: “doente”, “estranho”, “fanático religioso” (depois de tentativas patéticas de provar que ele era adepto do islamismo), “calado”, “pacato”, “antissocial”. A linguagem que separa Sempre que vejo a mídia utilizar em profusão os adjetivos e não os fatos para explicar uma violência, lembro-me de uma frase de Maria Rita Kehl no livro Videologias: “Sabemos, desde A interpretação dos sonhos, de Freud, que o desejo não tem que se realizar necessariamente em ato. Pode bastar-lhe a linguagem” (p. 90). Ao representar por meio da linguagem a exclusão dos responsáveis por atos de violência do contexto da “sociedade pura”, a mídia realiza desejos. Desejos de todos nós. A mídia nos satisfaz de duas maneiras. Primeiro, porque os adjetivos carregados de carga violenta, de negatividade, de julgamentos morais e suposições acerta de um “mal inerente” ao indivíduo que todos rejeitam nos permite exercitar nosso quinhão de violência reprimida. Podemos dirigir ao “monstro” todo o ódio que carregamos sem poder manifestar nas relações com nossos iguais. Segundo, porque o emprego desse tipo de linguagem reforça as regras sociais válidas e que cumprimos como contrapartida para nossa própria inserção social. É quando sabemos quem são os “monstros”, os “doentes”, os “loucos”, que construímos nossa identidade como membros “íntegros”, “corretos”, “bons”, da sociedade. E mais: é quando sabemos que esse “monstro” é o outro que sabemos que termos nos sujeitado a toda a coerção social valeu a pena: nosso prêmio pelo bom comportamento, nos revela esse tipo de linguagem, é poder despejar no outro nossos dejetos. Ao identificarmos esse outro como o criminoso diferente de nós, enxergamos finalmente o personagem principal de ações como matar ou morrer, sofrer, violentar, subjugar, explorar, “barbarizar”. O mundo se divide em “bons” e “maus”, o que significa dizer em “nós” e “eles”, respectivamente. Todo esse processo não passa de uma alienação. Alienação de nós mesmos e daquela parte cruel que há em todos nós e à qual alijamos sem nos dar conta de que ela não nos abandona nunca. Alienação do outro em nós, reprimindo assim todos os nossos conteúdos inconscientes. E também alienação diante das formas como se constituem as relações sociais, numa tentativa de acreditar que é possível extirpar o mal da sociedade excluindo dela aqueles que nos provam, por seus atos, o contrário. Falar do outro de forma agressiva, utilizando palavras negativas e, principalmente, carregando de conotação negativa aquelas palavras que o descrevem – como acontece por exemplo com a palavra “calado” que, em si, nada tem de ruim ou bom, mas que nesse contexto assume o significado de “ausente da sociedade”, “não integrado” – é uma forma de nos alienarmos das verdadeiras respostas àquele insistente “por quê”. Uma das respostas é que nós, que construímos essa sociedade como ela é, somos todos responsáveis por atos como o de um atirador que invade uma escola com duas armas. Porque o abandonamos nas vezes – várias – que antes disso ele mostrou necessitar de um acompanhamento, porque permitimos e até nos gabamos de que é fácil ter acesso a armas, porque alimentamos a ideia de que atos de violência são formas legítimas de se lidar com conflitos. Para quem não quer conhecer esses e outros porquês de eventos como o assassinato de crianças na escola de Realengo por um homem de 24 anos, os jornais, as revistas semanais que chegam às bancas neste domingo e os programas de TV oferecem as respostas alienantes de praxe.