Meia-Noite em Paris


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Muito já se escreveu sobre o filme de Woody Allen atualmente em cartaz no Brasil, e tenho dúvidas sobre quanto este texto pode ser útil. Mas decidi, ainda assim, escrever mais um texto sobre o filme, por dois motivos. Primeiro porque Meia-Noite em Paris me pareceu uma obra particularmente importante na filmografia de Allen. Tão famoso por seus personagens neuróticos, o filme faz parte de uma espécie de “fase” recente em que os protagonistas aprendem, finalmente, a enfrentar a neurose. E, nesse filme em particular, a desconstrui-la. Em Meia-Noite em Paris, o diretor traz um personagem que dá o salto que nenhum neurótico e quase nenhum de nós está disposto a dar: o do compromisso com o próprio desejo.

Gil Pender (Owen Wilson), o protagonista da história, é um roteirista de relativo sucesso de Hollywood passando uns dias com a noiva e os pais dela em Paris. Tem dinheiro. É reconhecido por seu trabalho e seus roteiros são desejados pela indústria cinematográfica. Tem uma noiva bonita que o valoriza por tudo isso. É bem verdade que não há muito amor entre eles mas, afinal, o amor é um de nossos desejos mais complicados, e talvez seja melhor, ao menos para um neurótico, não se comprometer em uma relação em que ele fale mais alto.

O personagem tem tudo, mas seu desejo verdadeiro é outro: imagina viver uma vida mais modesta em Paris e escrever romances. Não romances comerciais, como seus roteiros de cinema. Ele quer escrever romances dos bons. Daqueles que entraram para a história com mestres como Ernest Hemingway ou F. Scott Fitzgerald. Romances que tenham um clima das canções de Cole Porter e de prazeres banais como os de uma caminhada pelas ruas de Paris numa noite de chuva. Como desejo, pode-se dizer que este é bastante clichê, romântico, nostálgico demais. E é óbvio que ninguém ao seu redor leva a sério essa “bobagem”.

Uma noite, Gil decide caminhar pela noite parisiense e se vê literalmente perdido entre seu desejo que todos consideram fantasioso e a realidade. É convidado a embarcar na fantasia, sonhar. Ele aceita o convite. É o momento em que decide apostar em seu próprio desejo. Um desejo que o captura à meia-noite em um beco de Paris e o transporta para um passado idealizado. É no estranhamento da linguagem onírica, do passado nunca vivido mas sempre idealizado, da cidade estrangeira, das pessoas reais que para ele eram, ao menos até então, apenas personagens da História, que ele encontra a chave para o compromisso com o presente, transformando-o.

Essa relação com os “estranhos” familiares é muito interessante no filme. Em seu compromisso com o sonho e o desejo – e essas duas coisas não são as mesmas, como fica claro no filme no momento em que Gil se recusa a continuar a viver no passado – que ele encontra seu espaço. Passa a compartilhar o tempo e a interagir com personagens que têm os mesmos interesses que ele, que o compreendem, que o levam a sério e legitimam tudo o que ele ousa desejar. É verdade que não são pessoas de seu tempo. Mas isso já pouco importa. O tempo da fantasia e do desejo perde a lógica cíclica e contínua de “passado/presente/futuro”, transformando-se numa contínua sucessão de experiências sempre atuais, de insights e descobertas que o levam a acreditar e a se dedicar a realizar seu desejo de ser escritor, algo que, até então, era impossível para ele.

Sempre que falamos em uma incapacidade do neurótico em se comprometer com seu desejo, pensamos nesse indivíduo como um coitado insatisfeito, procrastinador, incapaz de dar um passo adiante, vencido, degradado. Esquecemos que a estagnação diante do desejo também é uma satisfação. Esquecemos que a neurose pode estar – e está – presente na vida de grandes realizadores e de pessoas que “têm tudo” o que se pode querer da vida. Esse “tudo”, essa “completude”, em geral traz a satisfação de corresponder àquilo que os outros ao redor esperam dele, de corresponder ao que é valorizado em um contexto social.

Esse é um dos aspectos complicados do desejo: ele nos pede compromisso e fidelidade a tal ponto que implica em deixarmos de lado as exigências dos sogros, dos pais, dos irmãos, dos patrões, do namorado ou da namorada. O compromisso com o desejo implica na quebra de compromisso com aquilo que esses outros esperam – ou, ao menos, gostamos de imaginar que esperam – de nós.
No caso do protagonista da história de Woody Allen, os sogros, a noiva e os amigos esperavam que ele se contentasse em ter uma situação financeira tranquila – capaz de pagar pela mobília cara de uma casa em Malibu –, um trabalho insatisfatório, mas que o colocava ao lado de celebridades, na posição de um profissional desejado na indústria em que atua,  uma vida intelectual medíocre e a uma vida amorosa vazia com uma esposa sexy de fazer inveja aos outros homens. Um kit a que poucas pessoas diriam não e que o próprio cinema, a mídia, as relações sociais contemporâneas, nos mostram que é legítimo, correto e até obrigatório desejar.

Acho que é nesse ponto que está a sutileza deste filme de Woody Allen em particular. Quando o personagem Gil desfaz seu compromisso com essas expectativas do outro, quando ele decide assumir que será escritor e finalizará o romance que todos consideram uma “bobagem”, ele mostra mais do que a superação da neurose pelo compromisso com seu desejo. Ele também mostra que é legítimo dizer “não” àquilo que a sociedade contemporânea insiste em embrulhar com o celofane brilhante do “desejo legítimo”. A sociedade é o outro mais poderoso contra nosso desejo e o que mais expectativas cria sobre nós. É isso que o desejo nos pede, que ousemos quebrar algumas convenções sociais, alguns pactos formais das relações cotidianas. E é isso que torna o desejo transgressor.

A opção dessa transgressão é sempre individual e implica sempre um preço a pagar dentro da economia de trocas simbólicas – para usar livremente uma expressão de Pierre Bourdieu – de que fazemos parte. Comprometer-se com o próprio desejo significa não apenas superar a própria neurose, mas a rede neurótica que sustenta a ideologia por trás das hierarquias e representações sociais. O consenso em relação ao que é valorizado, ao modo de se viver, às conquistas a almejar, à posição social a escalar, tudo isso se dissolve para um indivíduo que, como Gil Pender, ousa transgredir na ação rumo a um desejo que não tem valor na sociedade. É nesse sentido que o neurótico de Woody Allen se transformou em um heroico anti-herói.

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Beauvoiriana (aka Literariamente)