Instantâneos Sociológicos By Beauvoiriana (aka Literariamente) / Share 0 Tweet Às vezes, a vida cotidiana tem cenas que só não são mais perfeitas porque ninguém as arquitetou. Outro dia, presenciei uma delas. Por volta de 21h30, no centro de São Paulo, quatro padres, vestidos em suas batinas pretas, caminhavam rumo ao Mosteiro de São Bento. A sobriedade da imagem se iluminou quando quatro garis, mulheres vestidas em seus uniformes laranja, entraram em meu ângulo de visão caminhando exatamente no sentido oposto, rumo ao Pátio do Colégio, varrendo a calçada e recolhendo o lixo. Quando os dois grupos se cruzaram, uma das mulheres interpelou um dos padres e pediu uma bênção. O padre parou um instante diante dela, falaram-se, e ele a abençoou. Depois, cada um voltou a seu grupo e tomei meu ônibus. Nada aconteceu de extraordinário ali, mas quando vi a cena, me lembrei de uma frase do sociólogo Howard S. Becker: “tudo é trabalho de alguém”. A frase é uma espécie de antídoto contra a alienação como a concebe Karl Marx. Com a divisão do trabalho, em geral nos tornamos alienados em relação ao trabalho do outro e conhecemos, reconhecemos e valorizamos apenas aquela minúscula parte de todo o processo produtivo de que fazemos parte. Quando você anda pela cidade com a frase em mente, começa a perceber que todos os aspectos da vida cotidiana são trabalho de alguém. A rua está limpa porque alguém fez seu trabalho e as pessoas que têm fé se sentem abençoadas porque alguém fez seu trabalho. Claro que a cena descrita não sugere apenas essa interpretação. Também se evidenciavam ali, em cores contrastantes, muitas diferenças sociais: a posição de homens e mulheres na sociedade, a questão de classes, o próprio conceito de trabalho estava em jogo. Em vez de mulheres garis, poderiam ser homens exercendo aquela função, não há dúvida. Mas o contrário seria impossível. Mulheres não exercem cargos de autoridade e comando dos fiéis na igreja católica e, se fossem freiras a cruzar a rua Boa Vista naquela noite, dificilmente alguém lhes pediria uma bênção. As freiras rezam pela humanidade, mas não a abençoam. Os padres, em seus trajes sóbrios, representavam ali a retidão, a fé, o sagrado, o elevado. São pessoas privilegiadas porque têm uma autoridade, tiveram acesso a uma educação formal impecável e de longos anos. Sua função é dar materialidade à fé e à crença. O padre é um portador de símbolos e significados. Seu trabalho é, em si, exercer o poder da palavra, falar em nome de uma divindade a todos nós. Inclusive à mulher que varre as ruas e que, por melhor educação que tenha tido, e ainda que compartilhando a mesma religião, não teve acesso aos mesmos privilégios que o padre: por ser mulher, por ser de outra classe, por ser assalariada. Assalariada, empregada. Outra diferença que a cena evidencia: o emprego, a venda da mão de obra para fins de sobrevivência, é muito diferente do trabalho. No instante em que se falaram na rua, ambos, padre e gari, exerciam seu trabalho. Mas apenas um dos dois estava submetido a seu emprego. No exercício das funções que seu emprego exige, a gari trazia o logotipo de seu empregador no uniforme – a companhia de limpeza –, executava uma tarefa por um tempo determinado, portava seus instrumentos de trabalho e recebia uma remuneração. Já o padre, apesar da batina que, nele, é o oposto do uniforme, símbolo de sua figura diferenciada, exercia apenas seu trabalho: abençoava uma fiel, fora da igreja. O padre jamais poderia responder “não estou em meu horário de trabalho, minha filha”. Já a gari, se sua jornada de trabalho tivesse terminado, poderia dizer isso a quem lhe pedisse para varrer a rua. Mas engana-se quem imagina que a gari tem mais autonomia do que o padre diante dessa possibilidade de recusa. O padre não tem jornada de trabalho, não está preso à obrigação de realizar tantas bênçãos por hora ou à necessidade de garantir sua sobrevivência vendendo sua força de trabalho. O emprego é uma atividade que faz parte da cadeia produtiva de bens e serviços. E o padre está fora dessa cadeia produtiva, tem autonomia em relação a ela. Dizemos “trabalhador” para falarmos dos assalariados, mas esta é uma construção ideológica. Nem todo trabalho é assalariado. Aliás, a grande maioria dos trabalhos realizados no dia a dia não é remunerada: o trabalho das donas de casa, as tarefas de cuidar de uma criança ou um idoso da família, sem contar o trabalho informal. Após varrer a rua, aquela mesma mulher irá varrer sua casa. Ela não ganhará nada por isso, porque em nossa sociedade que confunde trabalho com atividade da cadeia produtiva, o trabalho doméstico não é reconhecido (nem remunerado) e não dá a ninguém o direito à aposentadoria e a benefícios. O padre, por sua vez, não está preso à dupla jornada, tem moradia e subsistência, cuidados com a saúde e velhice garantidos. Padres, garis, e todos nós somos, em alguma medida, trabalhadores. Mas da próxima vez que pensarmos nisso, para dar um passo além no combate à alienação, vale a pergunta: em que condições exercemos nossos trabalhos e nossos empregos?