Loganálise By César Ebraico / Share 0 Tweet Causa espécie, mas existe um fato candidato à posição de o mais significativo, dentre todos, para a história humana. O fato a que me refiro é a assombrosa ACELERAÇÃO DA EXPECTATIVA DE VIDA ocorrida nos últimos duzentos anos. Causa espécie, mas existe um fato candidato à posição de o mais significativo, dentre todos, para a história humana. O fato a que me refiro é a assombrosa ACELERAÇÃO DA EXPECTATIVA DE VIDA ocorrida nos últimos duzentos anos. Se causa espécie podermos apontar um único fato como o mais importante, entre todos, para o humano, mais espécie causa ainda quão pouco esse fato tem sido aproveitado para a compreensão das viscerais transformações ocorridas, por conta dele, na natureza da cultura. Com o fito de preencher essa lacuna, lancemos mão de uma lei psicológica, tão inescapável quanto qualquer lei da Física, qual seja: “Redução de ameaça gera descentralização dos processos decisórios”. Certas coletividades primitivas, que só elegem chefe e a ele obedecem, em situação de guerra, são o exemplo mais gritante dessa lei. Ora, o salto, em duzentos anos, nos países chamados desenvolvidos, de uma expectativa de vida de trinta e cinco anos (século XVIII) para uma de mais de setenta (século XX), queiram ou não os profetas do caos, implica, de forma inescapavelmente concreta, uma redução radical e inédita do nível de ameaça a que está concretamente sujeito o indivíduo humano, o que, segundo a lei psicológica supra-exposta, nos levaria a prever a ocorrência de uma maciça descentralização dos processos políticos ao longo do período em pauta. Com efeito, se observamos os anos que medeiam duas datas de inegável carga simbólica – 1789, Queda da Bastilha, e 1989, Queda do Muro – período que, por representar um verdadeiro “turning-point” antropológico, chamarei de “Os Grandes Duzentos” – constatamos que, antes deles, eram regra as autocracias, hereditárias ou ideológicas, e, depois deles, as democracias, republicanas ou não. A relação entre medo e centralização decisória é – de forma ora mais, ora menos, consciente – parte do conhecimento psicológico de todos nós. Qualquer ditador sabe como seus propósitos centralizadores são favorecidos pelo perigo e, se esse último cai por demais, ocupa-se imediatamente de tentar reintroduzi-lo, como recurso para se perpetuar no poder. Episódios de nossa história, como o da bomba no Rio-Centro e a igualmente frustrada tentativa de explodir o gasômetro, são exemplos disso e até o inocente papai ou mamãe que acena ao filho com o “bicho-papão” não está mais do que operando a partir de iguais premissas e propósitos. Ocorre, no entanto, que, à parte as tentativas dos autocratas de manter um nível de perigo que os sustente no poder, a própria descentralização, operada sem obediência a certas condições, é capaz de re-introduzir o perigo, provocando novo ciclo centralizador. Alegres “porres” democráticos são freqüentemente patrocinadores de tristes “ressacas” reacionárias. O exemplo mais próximo e exuberante disso foi o período de conservadorismo político-ideológico que se fez seguir ao clímax libertário de 68. De forma lamentavelmente irônica, os Charles De Gaulle e os Richard Nixon, são eternos beneficiários dos Jimmie Hendrix e das Jane Joplin… Mas retornemos à linha básica de nossa argumentação. Se nenhum cataclismo planetário nos remeter globalmente de volta a níveis de expectativa de vida anteriores ao dos Grandes Duzentos, podemos, amparados na lei psicológica supramencionada, prever que o PROCESSO DESCENTRALIZADOR (1) veio para ficar e (2) está longe de se haver completado. Isso posto, seria de indiscutível bom alvitre que (3) tivéssemos clareza sobre quais são as condições necessárias para que essa transição possa ocorrer da maneira o menos dolorosa possível e que (4) alguma teoria nos ensinasse o que deve ser feito para que tais condições sejam preenchidas. Quanto às condições necessárias para que o inevitável processo de descentralização apresente uma boa relação custo-benefício, elas, na verdade, resumem-se a uma só: se parcelas anteriormente centralizadas de poder decisório estão e continuarão sendo, cada vez mais, distribuídas pela massa dos indivíduos que compõem cada sociedade, a condição de sucesso dessa descentralização é o aperfeiçoamento da capacidade decisória desses indivíduos. Estabelecida a condição, cumpre saber como implementá-la. Temos, no armazém das ciências humanas, alguma teoria que nos oriente sobre como fazê-lo? Bem, teríamos… “Teríamos”? Somos, aqui, remetidos a um velho e bom dito de Oscar Wilde, qual seja: “os remédios dos homens são contaminados pelas próprias doenças que pretendem curar”. A teoria capaz de nos oferecer suporte científico para patrocinar um desdobramento azeitado do processo descentralização foi gerada no coração dos Grandes Duzentos, período em que a luta entre forças centralizadoras e descentralizadoras chegou a seu cume. Assim sendo, essa teoria terminou por tornar-se vítima do próprio processo antropológico-cultural que a gestou. A divulgação de suas descobertas foi de tal forma distorcida que ela se tornou inútil, quando não deletéria, para administrar a transição descentralizadora. Examinemos isso: A doença mental é, em sua essência, uma disfunção dos processos decisórios. Se o sucesso da democracia depende do bom funcionamento desses processos, é rasteiro exercício dedutivo concluir que os regimes políticos descentralizados, como garantia de sua própria sobrevivência, deveriam ter como meta prioritária o combate à doença mental, a maior corruptora dos processos psicológicos de que devem se alimentar tais regimes. Essa afirmação exige ser qualificada. As sociedades anteriores aos Grandes Duzentos – e todas aquelas que, ainda hoje, apresentam expectativas de vida características daquela época – organizam-se de acordo com o que chamei de “culturas de sobrevivência”: culturas politicamente centralizadas, aguerridas e, conseqüentemente, dominadas pelo macho, marginalizadoras do fraco, exaltadoras do sacrifício e da obediência. As posteriores àquele período – e que conseguiram duplicar, ou quase, sua expectativa de vida – começaram a organizar-se de acordo com a matriz antropológica a que denominei de “culturas de bem-estar”: politicamente descentralizadas, cooperativas, integradoras do feminino e do desvalido, valorizadoras da autonomia e do prazer. Por que a Psiquiatria do século XVIII, clara expressão de uma “cultura de sobrevivência”, volta-se para a psicose e mal se interessa pela neurose, enquanto a do século XX – posterior à “pororoca antropológica” a que me venho referindo e fruto dos primeiros passos de uma “cultura de bem-estar” – reconhece a importância dessa última? A resposta é simples: a disfunção psicótica é suficientemente grave para perturbar até a função psicologicamente primária de reproduzir e obedecer, alto valor para uma “cultura de sobrevivência”, enquanto o neurótico, razoavelmente capaz de desempenhar tal função primária, apresenta principalmente atingidas a qualidade de sua autonomia decisória e a sua capacidade de ser feliz, traços centralmente relevantes apenas para sociedades que ascenderam a uma “cultura de bem-estar”. Disse, acima, que “teríamos” uma teoria capaz de nos oferecer suporte científico para patrocinar um desdobramento azeitado do processo descentralização. Já nos encontramos aparelhados para desvendar esse “teríamos”. Produto típico do divisor-de-águas antropológico representado pelos Grandes Duzentos e operacionalizadora da “Umwertung aller Werte” (transmutação de todos os valores) que havia sido trovejada por Nietzsche, a Psicanálise anunciou, bem a meio daquele período, sua descoberta essencial: repressão causa neurose. Ora, sendo a neurose a mais universalmente difundida causa de perturbação dos processos decisórios, essa teoria deveria ter servido para orientar as políticas de saúde com o objetivo de alçar o nível de capacidade decisória da população. E serviu? Não. Por quê? Por que, como adumbramos acima, o conceito de repressão foi, ao ultrapassar os limites do meio profissional onde foi gerado (e, em certa medida, mesmo dentro dele), de tal forma distorcido que se tornou inútil para cumprir a tarefa a que, por vocação, se destinava. Com efeito, todo – sublinhe-se que eu disse todo – o cidadão comum (e alguns profissionais) a quem, até hoje, perguntei o que era “repressão”, “reprimir”, “reprimido”, etc. responderam-me com alguma variação da afirmativa de que reprimir é “impedir que alguém faça algo que está querendo fazer”. Esse tipo de compreensão, aplicado à afirmação freudiana – supostamente científica e, portanto, supostamente útil – de que “repressão causa neurose”, transforma-a na gloriosa asnice de afirmar que, para que uma pessoa não fique neurótica, é necessário que se permita a ela fazer o que bem entende. Não é difícil prever que uma política de saúde mental assentada sobre tal compreensão deformada do conceito nos levaria, fatalmente, a múltiplos e orgásticos 68s, a múltiplos e lamentáveis óbitos por overdose e a múltiplos – e não de todo injustificados! – governos conservadores, por reação. Como é de conhecimento público, essa desastrosa distorção do mais fundamental dos conceitos psicanalíticos já deu fundamento a pedagogias que transformaram crianças em pequenos monstros e a tratamentos pseudo-psicanalíticos que confundiram saúde com falta de educação. Quando não pior… Deixemos isto claro: permitir, na área psicológica, que repressão seja entendida – como vem sendo até agora – com “não poder fazer” é algo tão criminoso quanto seria, na área médica, permitir à população confundir micróbios com vitaminas. Faz-se mister que os profissionais da área da saúde mental iniciem uma ação concertada e sistemática para reparar a inércia com que têm aturado tal destruição da mais importante descoberta psicológica do século XIX. Todo “blá-blá-blá” atual relativamente à crise da Psicanálise nos seria poupado, fosse entendido que a verdadeira raiz dessa crise é a insidiosa degradação do conceito de repressão, que, corretamente entendido, nada mais designa do que a impossibilidade de expressarmos verbalmente o impacto que os estímulos internos e externos tem sobre nós. A restrição da representação de nossa experiência em nível verbal acaba produzindo uma restrição de nossa inteligência, o que fatalmente atinge a qualidade de nossos processos decisórios. Dessa disfunção decisória, através de mecanismos psicológicos bem definidos, nascem todos os outros sintomas da neurose: obsessões, compulsões, fobias, conversões, etc., etc.. A liberação da palavra, contudo, também tem suas regras, mas regras suficientemente claras e simples para poderem ser postas ao alcance da população de forma a permitir que a Psicanálise saia dos consultórios e atinja seu verdadeiro objetivo, que é o de ser um agente catalisador do processo democrático, micro e macropoliticamente. Até o momento em que isso ocorra, a população, ávida de orientar-se em um mundo em que as regras de conduta não mais se resolvem por “tábuas da lei”, continuará a entupir-se de uma literatura de auto-ajuda dividida entre uma Psicologia do Faz-de-Conta que nos propõe acreditarmos estar bem, quando estamos mal, e uma Psicanálise interpretativo-masturbatória, que tudo explica, mas pouco resolve.