Alta em Psicanálise: Existe isso?


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Alta em Psicanálise: Existe isso? (I)

I. Uma Vinheta Clínica.

Para começar, quero trazer a atenção de vocês particularmente para um sonho – e para uma especial transformação com ele ocorrida – que se encontra relatado em meu livro, “A Nova Conversa”, no trecho que transcrevo abaixo[1]:

“Quando chegou a mim, Renato … havia trancado sua matrícula na faculdade de medicina, rompido sua relação com seus amigos e com sua namorada, começara a colecionar imagens de Buda em seu quarto e passava a maior parte de seu dia dentro do mar, acoplado a uma prancha de surf. Hoje, é médico de sucesso em um dos países do primeiro mundo e creio firmemente que, não fosse a análise, estaria hoje tomado pela psicose, alienado do mundo, quem sabe refém de uma instituição psiquiátrica.

Uma de suas primeiras comunicações foi sobre o sofrimento que lhe provocava um pesadelo. Um pesadelo que, por indesejáveis vezes, se repetia, a ponto de lhe trazer medo de dormir, tentando evitar essa repetição. Ele corria assim:

Sonhava que estava andando em um corredor … A certa altura, começava a escutar passos atrás de si. Apertava os seus. Atrás de si, os passos também se apertavam. Apertava-os mais um pouco. Os detrás dele também. Começava, então, a correr. Quem estava atrás dele começava a correr também. E a corrida de ambos se tornava desabalada, até que Ronaldo sentia um bafo quente em sua nuca e via uma mão peluda colocar-se sobre seu ombro direito… Acordava esbaforido, suando, com seus movimentos paralisados, querendo gritar um grito que teimava em não sair…

No curso de sua análise, durante a qual o pesadelo várias vezes se repetiu, algo aconteceu. Sonhou que, mais uma vez, estava andando, no corredor. Mais uma vez, ouviu os passos atrás de si. Mais uma vez, apertou os seus passos, e os outros se apertaram também. Mais uma vez, começou sua desabalada carreira, quando pensou: – “Pô, estou com o saco cheio!” E, de imediato, virou-se no corredor, disposto a defrontar-se com seu perseguidor. E viu uma nuvem negra que começou a afastar-se dele, diminuindo sempre, até desaparecer no extremo do corredor. Nunca mais teve esse pesadelo.

A partir desse episódio, que ocorreu cerca de três anos após o início do tratamento, a melhora de Renato se acelerou fortemente: parou de passar seus dias dentro d’água, surfando, reabriu sua matricula na faculdade, voltou ao convívio de seus colegas, por fim, reatou com a namorada, formou-se, candidatou-se a uma pós-graduação fora do Brasil, foi aceito e, satisfeito com nosso trabalho, despediu-se de mim.”

II. Nosografia, nosotaxia e nosologia:

Brindei meus leitores com esse fragmento de caso clínico com a esperança de que sua leitura os animasse a me seguir nesta segunda seção de meu artigo, a qual trata de algo mais árido, mas essencial para que nos aproximemos de maneira suficiente sólida do problema da alta em Psicanálise, para que esse fragmento aponta. Refiro-me à importância de se compreender o significado dos termos-título e de tentar sanar os mal-entendidos existentes em torno de cada um deles.

É sabido que a maioria dos termos científicos tem origem no grego e no latim. “Nosos”, em grego, significa “moléstia, enfermidade, doença”. Dele se derivam os termos “nosografia”, “nosotaxia” e “nosologia”, que merecem significados bastante precisos e distintos, mas relativamente aos quais, infelizmente, impera vasta confusão na literatura médica e, particularmente, psiquiátrica. Tentemos reparar isso, fixando os usos que, analogamente a outros autores, passo a defender:

· “NOSOGRAFIA” (“graphein” = escrever) – Esse termo, empregado de forma coerente, deve corresponder ao tipo de designação dadas às várias doenças. Assim, a versão do Código Internacional de Doenças atualmente em uso (CID-10) chama de Transtorno Obsessivo-Compulsivo a mesma doença anteriormente conhecida como Neurose Obsessivo-Compulsiva: nada mudou no que diz respeito ao estado mórbido ao que nos estamos referindo; alterou-se apenas sua denominação, seja, sua nosografia. O mesmo ocorreu com a Psicose Maníaco-Depressiva, continuou sendo o mesmo que era, mas passou a ser nosografada como Transtorno Bipolar. Boa parte dessas alterações nomenclaturais são apenas cosméticas, devendo-se a uma reverberação, no campo médico, da onda do “politicamente correto” que, na sociedade americana, tenta diminuir os obstáculos opostos aos negros chamando-os de “afrodescendentes”. Mas, na verdade, alterações meramente nosográficas tem muitas vezes seu sentido. Afinal das contas, há poucas dezenas de anos, a literatura psiquiátrica os portadores de vários níveis – leve, moderado, grave e profundo – de retardo intelectual eram nosografados como “débeis mentais”, “idiotas” e “imbecis”! O que acham?

· “NOSOTAXIA” (“taxis” = arranjo, arrumação) – Aqui já não estamos falando de meros nomes, estamos falando dos critérios a serem preenchidos para que a pessoa possa ser incluída ou excluída de um determinado grupo e, como é previsível, divergências nosotáxicas podem criar muito mais confusão do que divergências nosográficas. Querem ver? Simples. No início do século passado, bastava a alguns pacientes atravessarem o Atlântico, indo dos EUA para a Europa, para ficarem “curados” de uma esquizofrenia. E por quê? Por que eram montados de formas diferentes (diferenças nosotáxicas) os grupos aos quais cada uma das regiões aplicavam o mesmo nome (nosografias iguais). Ora, como as normas européias de composição desse grupo eram mais restritivas do que as americanas, uma pessoa podia preencher essas últimas – merecendo o diagnóstico – e não preencher as outras – não o merecendo… Um dos grandes méritos do Código Internacional de Doenças é ter acabado com boa parte desse tipo de confusão.

· “NOSOLOGIA” (a palavra “logos” é absurdamente polissêmica, mas, aqui, merece ser entendida como “estudo explicativo”) – Para chegarmos à nosologia temos que ter uma nosotaxia e uma nosografia bem estabelecidas. Começam aí a produção de hipótese e as pesquisas que levam – ou não – à descoberta da etiologia (= causa) e patogenia (= processo de formação de sintomas) de uma entidade mórbida, com desdobramentos sobre melhor forma de tratamento etc..

Quem me acompanhou até aqui provavelmente concordará comigo sobre que estamos bem aparelhados de um léxico que nos permite comunicar de maneira precisa quando estamos pretendendo falar da nomenclatura (nosografia), da classificação (nosotaxia) e do estudo explicativo (nosologia) das doenças.

Esclarecido isso, passemos para o campo que, de fato, nos interessa. Frente ao exposto, no caso de essas doenças serem mentais, os termos adequados seriam, obviamente, os de psiconosografia, psiconotaxia e psiconosologia. Seriam termos etimologicamente impecáveis e de compreensão clara e precisa.

Mas por que, em vez disso, toda essa adequação etimológica e essa aparentemente valiosa distinção de significados foi substituída, no uso da maior parte dos profissionais e maioria absoluta dos leigo por um única palavra: Psicopatologia?

Parece-me que porque, como dizia, Oscar Wilde, os remédios dos homens estão contaminados das próprias doenças que pretendem curar.

II. Nosologia versus Patologia.

Freud, ao final do século XIX, chocou o mundo, defendendo, na esteira de Nietzsche, que, pelo menos no que diz respeito ao mental,

O SAÚDÁVEL É EXATAMENTE O PATOLÓGICO.

Como assim? Vejamos:

Francis Edwards Peters, em seu fantástico Termos Filosóficos Gregos, após comentar sobre a obscuridade da história da palavra “pathos”, nos ensina que o termo foi encarado, no pensamento grego,

“tanto como ‘o que acontece aos corpos’ como ‘o que acontece à alma [= psyché], primeiramente sob a rubrica geral de qualidades, segundo sob a de emoções”.

Agora, pergunta-se, o que aconteceu na história do Ocidente, que “patologia” – literalmente, “estudo das emoções” – transformou-se em “nosologia” – literalmente, “estudo das doenças” e fazendo-o de forma tão radical a ponto de ocupar o lugar desse segundo termo – de todo mais legítimo – alijando-o do uso de profissionais e leigos?

Como essa história conseguiu sustentar – pelo menos por dois mil anos, pois já não foi assim – que “ser patológico” – discursar a emoção – é ser doente?

Como, resumidamente, conseguiu o brilhante feito de construir a fórmula

“EMOÇÃO = DOENÇA”?

No próximo capítulo.

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[1] A Introdução e o Primeiro Capítulo desse livro podem ser acessados em meu site, o www.loganalise.com.

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César Ebraico