O conceito de doença mental: natureza e função – pt 2

Em resposta à primeira postagem da minha série de contribuições sobre a natureza e função dos conceitos de saúde e doença mentais, Robson Faggiani escreveu: “Talvez fosse melhor defender as classificações antes de utilizá-las para falar de um texto [o dele] ‘anti-classificações’.

Ele tem razão. No que segue, passo a contemplá-la.

Sofisticações teóricas possíveis e sofisticações teóricas desejáveis

Haeckel (1834-1919), o zoólogo, biólogo e filósofo alemão, afirmava que toda evolução implica necessariamente diferenciação e integração das partes diferenciadas.

Esse critério, que eu subscrevo, pode ser aplicado não apenas a seres vivos – o que me leva a classificar uma barata como menos evoluída do que um ser humano – mas também a sistemas de pensamento – o que me leva a classificar como menos evoluídos, sistemas de pensamento pouco diferenciados, no que diz respeito a:

  1. Mensuração – A Física derivada de Galileu é mais evoluída do que a de Aristóteles porque, entre outras coisas, enquanto a desse último trabalhava com classes – propondo, por exemplo, uma teoria para o frio e outra para o calor – a do primeiro trabalha com contínuos – integrando, em uma só teoria, as infinitas gradações do contínuo temperatura;

  2. Vocabulário – O vocabulário dos esquimós, no que diz respeito a “neve”, é mais evoluída do que as demais, pois tem mais de uma dezena de termos para indicar diferenciações passíveis de serem reconhecidas no fenômeno ao qual outras linguagens se referem empregando um só; a linguagem técnica da Medicina, analogamente, só para lidar com o fenômeno “doença”, tem um número de palavras igual ou maior do que a dos termos não técnicos do idioma a que pertence, sendo, portanto, no que diz respeito àquele fenômeno, mais evoluída do que seu vernáculo;

  3. Teoria – a Astronomia de Einstein é mais evoluída do que a de Newton, essa do que a de Kepler, essa do que a de Galileu, essa do que a de Copérnico, essa do que a de Ptolomeu. Cada um desses ‘saltos evolutivos’ corresponde à introdução de mais diferenciação e de mais integração dos dados diferenciados, sendo, por isso, capazes de explicar fenômenos dos quais o estágio evolutivo anterior não sabia dar conta.

Se válido esse critério – e caberia agora a Robson defender que ele não é – uma teoria capaz de diferenciar o neurológico do psicológico e saúde de doença, seria mais evoluída do que uma, como a de Skinner, incapaz de fazer isso. Fica, entretanto, um problema: ser mais evoluído equivale a ser melhor?

Defendo a tese de que tal superioridade só pode ser avaliada relativamente à tarefa que se tem em mãos e ao contexto em que ela deverá ser levada a cabo. Com efeito, corre que, se a tarefa é sobreviver e o contexto é uma explosão atômica, mais vale ser barata do que ser humano… Aquelas, menos ‘evoluídas’, sobrevivem à bomba, esses últimos não. Como fica isso no que diz respeito a sistemas teóricos, léxicos e de mensuração?

Consideremos o seguinte episódio, fictício, é claro: chego a uma praia e, para orientar-me quanto a como posicionar minha barraca, pergunto a alguém que ali encontro: “Por favor, em que sentido se põe o Sol?” E a pessoa me responde: “Amigo, o Sol não se põe. Na verdade, o movimento de rotação da Terra em torno de seu próprio eixo é que, enquanto ela traslada em relação à posição, tida como fixa, daquele astro, cria a ilusão de que ele se levanta e se põe. Portanto, o que o senhor quer, na verdade, é saber qual é, relativamente ao ponto que nos encontramos e a posição fixa do Sol, o sentido dessa rotação.” Pergunta-se: em tal contexto e para tal propósito, para que nos serve a superioridade teórica do heliocentrismo sobre o geocentrismo? Fácil de responder: para nada. Melhor: serve para amolar nossa paciência.

Salta analogamente à vista que, para o contexto em que vivo eu, um carioca, e face aos problemas meteorológicos que devo enfrentar, de pouco me serviria – ou melhor, muito me pesaria – possuir, no que diz respeito a neve, um léxico tão sofisticado quanto o dos esquimós. Da mesma maneira que, para concluir qual o tamanho adequado para a perna de uma calça, de pouco serviria – na verdade, atrapalharia – a um costureiro medi-la em mícrons.

E para bem exercer o ofício psicoterápico? Devo dispensar a sofisticação de classificações mais evoluídas, que separam o psicológico do neurológico, o saudável do que não é?

Robson e Skinner dizem que sim. Eu digo que não.

No próximo capítulo.

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César Ebraico