Mal belo By Danilo Augusto de Athayde Fraga / Share 0 Tweet Danilo Augusto I Ainda é cedo para me impor tal empenho, de labor oculto e fruto difícil: falar Whitman. Falar sobre Whitman, falar ele. Mesmo porque, desde que por mim descoberto, Walt se apossa progressivamente da minha fala, do meu estilo; ele é meu daemon primeiro. Como a leitura de Shakespeare, a leitura de Kafka, aquilo que circula nas “Folhas de Relva” contém uma dádiva e perigo mortal, para qualquer escritor, para qualquer mente criadora: essa originalidade absurda, improvável, irrastreável. A escrita que lê a nós antes que possamos lê-la, que é clara e nos desvenda a céu aberto, que se infiltra em nossas palavras, que, parece, constrói a nós mesmos antes, antes de podermos qualquer coisa diante dela, dando outro significado à expressão “a obra que lê a si mesma”. Talvez, essas palavras, soem como mitologia barata ao leitor mais distante, mais aquele que se empenha nesse objeto, o leitor que procuro, o leitor-criador, o leitor autocriador (aquele que, antes de tudo, busca na leitura a formação e desconstrução do próprio eu) irá perceber o desafio que se impõe ante Whitman: rejeitá-lo ou superá-lo – a ignorância nos é vedada. E olhando para o Walt que anuncia a “Canção de Mim Mesmo”, sinto, verdadeiramente, que nossos átomos se pertencem. Sinto, por vezes, o lápis correr no papel sem ser eu quem escreve. Então como escrever eu mesmo? Como escrever sobre ele, de verdade? É preciso começar de algum lugar, mesmo no erro. II Não se trata de escolher uma influência, mas dela escapar. Borges uma vez disse em suas aulas que, na juventude, Whitman era o seu autor total, o homem que tentou cumprir a missão de ser todos os homens e escrever um livro que fosse todos os livros. O peso sedutor da influência do poeta teve que ser, por Borges, desprezado, ao custo de nunca formar-se (e ser como um Neruda receoso). Pessoa, pela boca de Álvaro de Campos, em seu longo poema “Saudação a Walt Whitman”, declara: “(…) Não sou digno de ti, bem sabes, Walt, (…) Sou dos teus, tu bens sabes, e compreendo-te e amo-te (…) Sei que me amaste também, que me conheceste e explicaste (…) … Meu corpo é o que adivinhas, vês minha alma(…)” Walt, nesses versos, é profeta, é o poeta profeta, o médium das antigas comunidades gregas. Talvez esteja aí parte da angústia de Borges, deixar-se como leitura a um poeta precursor, se deixar ser desvendado, descobrir-se lido por Walt e não o seu leitor. Pois Walt, à semelhança de tão poucos, lega a posteridade de escritores essa benção-maldição: o dever de lê-lo, escolhê-lo e superá-lo. Pois, Whitman é mais do que o poeta da América. Whitman, antes e mais do que Baudelaire, é o poeta do homem moderno. Mas, mais do que isso, Whitman é o poeta da modernidade e do tempo e da vida moderna. O deus, o profeta, o homem comum que circula nas páginas de “Folhas de Relva”, o “Walt Whitman, um bronco, um kosmos”, é uma personagem literária à semelhança do Fausto de Goethe, do Satanás de Milton, de Hamlet e Quixote, é uma imagem consolidadora, um arquétipo da psique, do Eu, enfim, da personalidade dos homens e mulheres ocidentais e contemporâneos a nós e nos é inescapável. Ninguém que vive em nosso tempo de democracia, democracia do corpo e autoridade da “alma”, pode realmente, conscientemente, deixar de ler Folhas de Relva, como não conseguiremos deixar de ler os gregos, a bíblia hebraica ou os solilóquios de Hamlet, os tenhamos lidos ou não. III “Eu celebro a mim mesmo E aquilo que assume você deve assumir Pois cada átomo que pertence a mim pertence a você” Essas são as primeiras palavras da “Canção de Mim Mesmo” (Song of Myself), uma abertura que já deixa suspeitar a enorme ambição contida no poema que ocupa a metade do livro “Folhas de Relva” (Leaves of Grass), ambição que, como creio, vastamente realizada, consolidou, em nossos dias, uma das máximas mais vulgares, mais totais, pela boca de Whitman em diversas páginas: “Tudo é sagrado”. Pois não foi Emerson ou Montaigne que fecundou no solo do nosso inconsciente, dos nossos mitos, essa imagem do corpo que se diz kosmos e se diz bruto, o corpo divinizado que se estende pela relva, como relva, tão divino como ela. Mais foi Walter Whitman, jornalista mediano em um escritório no Brooklin, enfermeiro na guerra civil, admirador de jovens rapazes que, pela boca do profeta Walt Whitman, declara: “Eu próprio espero minha vez de ser um Deus Creio que farei tão bem e serei tão puro e prodigioso como sempre” Whitman da Canção de Mim Mesmo, a semelhança do Cristo dos Evangelhos, é um Deus que se fez carne para habitar entre os homens. Cristo, na teologia cristã, é o verbo divino, metafísico, que “desce” até o nosso plano e nos traduz aquilo que está para além da natureza e está além do nosso eu. Mas Whitman, também é a carne, que se transforma em relva ou em deus ao seu bel prazer, já que: “uma folha de relva não é menos que a jornada das estrelas”. Whitman- o “cristo carpinteiro“, como ficou conhecido por muitos seguidores- não se separa da natureza. A fórmula “tudo é sagrado” traduz “você é sagrado”, “você é sagrado assim como a relva sobre o solo, assim como as estrelas” e nessa jornada pelas folhas de relva ele é, simultaneamente, nosso mestre e discípulo, ele se propõe a “engendrar nas mulheres prontas a parir bebês mais fortes e mais ágeis” a dar “força e fibra ao nosso sangue”. Mas, estando dispostos a encontrá-lo, devemos procurá-lo “debaixo da sola dos nossos sapatos. Ele “se entregou a terra para renascer da relva que ama”. Aqui, são as linhas finais do poema, linhas que eu considero das mais belas de toda poesia que conheço. Nessas estrofes, Whitman aparece tão confiante quanto no começo, consciente do seu papel, anunciando uma profecia derradeira. Esse Walt Whitman é um antecessor imediato do Zaratustra de Nietzsche e disso ele também parece consciente: “Me contradigo? Pois bem, então…. Me contradigo; Sou vasto…. Contenho multidões. Me concentro nos que estão perto…. espero à porta. Quem terminou o batente e vai jantar mais cedo? Quem quer passear comigo? Você vai falar antes que eu vá embora? Ou se virar quando já for tarde demais? O falcão pintado dá rasante sobre mim e me acusa…. reclama da minha conversa fiada e da minha preguiça. Também não sou facilmente adestrável, também não sou facilmente traduzível, Solto meu grito bárbaro sobre os telhados do mundo A última nuvem do dia se demora sobre mim, Lança a minha semelhança após o resto, fiel como todas nos ermos sombrios, Me incita pro vapor e pro crepúsculo Vou-me feito vento…. agito meus cabelos brancos sobre o sol fugitivo Esparramo minha carne em redemoinhos e a deixo flutuar em retalhos rendados Me entrego à terra para crescer da relva que amo, Se me quiser de novo me procure sob a sola de suas botas Vai ser difícil saber o que sou ou o que estou querendo dizer Mesmo assim vou dar saúde, Vou filtrar e dar fibra ao seu sangue. Não me cruzando de primeira não desista, Não me vendo em um lugar procure em outro, Em algum lugar eu paro e espero você.” Comentários Certamente, ainda há muito o que dizer (e eu o farei). Porém, não é possível aglutinar tudo nesse espaço, e eu mesmo já me encontro bastante apertado entre as ideias e frases, por vezes, tão mau construídas. Desejei, somente, apresentar o Walt Whitman que conheço, e essa tarefa eu continuarei na próxima semana. A literatura leva tempo. A arte leva tempo, tempo demais, tempo que já não estamos dispostos a conceder. De qualquer forma- e essa é outra história- Walt é um poeta querido, é um desafio e um objeto de estudo. Mal toquei as questões que me são caras, espero fazê-lo em breve. Quero explicar essa gigante, complexa, e finíssima relação que liga os poemas de Walt com nossa modernidade, nossa estética e moral. Sendo que ele é o poeta que anunciou tanta coisa antes (e com mais força) de nomes que conhecemos tão melhor: Nietzsche, Baudelaire, Rimbaud. Walt, não sei quantas décadas antes, declara (lá na Canção de Mim Mesmo): “The other I am”. Quem lê Rimbaud sentirá o impacto do que estou dizendo. O fio mais emaranhado, o que cruza toda essa construção dos seus escritos (que Deleuze, inspirado mesmo por ele, dirá rizomática), que pretendo trazer no próximo capítulo, é a questão da Imanência. Walt é o grande nome desprezado da imanência na modernidade e também da consciência do ser imanente- antes de Nietzsche e, mesmo, contrário a ele. Na verdade, serei bem franco ao dizer, que me parece que Walt ensinou muito do que Nietzsche nos disse. Walt Whitman é um próximo, porém potente, precursor de Zaratustra. E por tantos motivo deixamos de ler este poeta. De um lado, um antiamericanismo cego e ideologizado (alguém já disse que ideologia é o contrário do pensamento) que liga sua figura ao Imperialismo americano- é fácil nos lembrarmos como, durante todo o século XX, Nietzsche ficou atrelado ao nazismo- e por outro, é o próprio hábito de leitura que impede-nos de ler qualquer poema com mais de duas folhas ou que não trate de um “eu” que “se joga dos precipícios para aprender a voar”. Mas isso são pequenas querelas e mesmo provocações. Termino com uma passagem de um poeta magistral, Hart Crane, em um longo poema em homenagem a Walt, o “IV Cabo Hatteras”: “Walt, diz-me Walt Whitman se o infinito É ainda o mesmo dos tempos em que caminhavas na praia Perto de Paumanok –a tua patrulha solitária- e ouvia aparições Através da ressaca, a sua nota de pássaro caindo lentamente (…) Oh Caminhante em frente pelos caminhos livres! (…) Sim Walt Mais uma vez em pé, e em frente sem parar- Nem agora ou repentinamente, – não deixes nunca que A minha mão largue a tua, Walt Whitman- Assim-