Os mortos-vivos, os vivos e os mortos


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Danilo Augusto

 

Qual a atualidade dos zumbis de “The Walking Dead”?


 

I

          Nos antigos tempos Atenienses, existia um nefasto período no calendário no qual os mortos eram desenterrados e voltavam a habitar junto com os vivos. Era durante o Apopharades, dias de impureza e infelicidade para os gregos, quando os templos eram fechados e cercados, que os homicídios eram levados a julgamento. E, no interior do templo de Atena, a estátua da deusa, uma vez despida, tinha suas vestes ritualmente lavadas por homens de olhos vendados.

        Este era o período em que os mortos voltavam para as suas antigas casas que, agora, estavam ocupadas por outros, os vivos. Então, face a face, morte e vida se encontravam em seu plano mais carnal, mais concreto, a morte do corpo apresentada sem os panos da fábula: a putrefação, o corpo entre a carne e a terra, decomposto, fétido, de olhos ocos. E, por ser tempo de impureza, o Apopharades era também tempo de purificação e expiação. Com o julgamento dos crimes e a lembrança dos mortos, os homens e mulheres expiavam a si mesmos e perdoavam os deuses.

 

II

 

        Ainda enterramos nossos mortos, embora o façamos cada vez menos; práticas como a cremação nos livram a memória de um corpo que apodrece no leito da terra e quebra o elo entre morte e corpo, entre a perda da vida e a degradação da carne, mostrando a morte como um fim absoluto e instantâneo ou como transição puramente espiritual. Mas ainda enterramos os nossos mortos e, uma vez enterrados, eles jazem esquecidos sob uma realidade que nega toda a degradação, toda marca e cheiro do tempo que passa nos corpos vivos. Como o inconsciente, nossos mortos se ocultam nas camadas mais profundas da nossa realidade.

       Nossa sociedade nega tudo o que é morte e tudo o que é velho. Sob uma ordem de eterna juventude, de uma juventude estendida por todas as idades humanas, nós não cultuamos mais nossos antepassados, nem honramos a velhice. Ainda no corpo vivo, a velhice é evitada a todo custo e terror. Desejamos corpos lisos, esticados, imaculados. As estrias e a veias que saltam roxas, a carne flácida e opaca, as marcas de um corpo que adentra progressivamente no reino do inanimado e do vegetal são sinais, em nossos dias plásticos, da mais profunda degradação, da degenerescência não só do corpo individual, mas da própria sociedade.

       A morte foi, progressivamente, exilada da consciência do homem moderno, passando a existir somente como catástrofe nas estáticas ou noticiários ou como o reino do horrível, dos rancores acumulados, dos monstros e fantasmas. Não é nenhuma novidade dizer que vivemos como se nunca fôssemos morrer, porém apesar da verdade de tal afirmação, esta posição não se sustenta sem certa dose de esquizofrenia, sem os impulsos que escapam, transfigurados, das camadas de terra.

      “O homem é um cadáver adiado”, uma vez disse Pessoa, e é na convergência dessa inescapável afirmação com a consciência de uma morte desvalorizada e reprimida que nossos mitos são resignificados e que motivos uma vez rasos e inexpressíveis, como o do morto-vivo, o do zumbi, ganham peso, significância e posição de grande metáfora para a situação da morte na contemporaneidade.

 

III

 

         Na série televisiva de maior sucesso atualmente, “The Walking Dead”, inspirada no quadrinho homônimo de Robert Kirkmam, o mundo é, repentinamente, acometido por um “apocalipse zumbi”. Como já se tornou costume nas franquias de zumbis, a origem do apocalipse não é explicitada. Entre os poucos minutos iniciais ambientados em um “lugar-comum americano” e um segundo momento de uma realidade apocalíptica que deixa a impressão que toda a humanidade foi tragada pela morte, a guerra entre os vivos e os mortos-vivos se deu longe da tela.

        Interesso-me menos pela narração que acompanha um grupo de indivíduos sobreviventes (um polo focado nos conflitos internos, saturados de clichês na construção das personagens e nas constantes discutições acerca da moral e do que constitui a essência do ser humano) do que na realidade que circunda este grupo, algo que paira ininterruptamente no fora de campo e que sempre acaba por invadir o primeiro ambiente: a multidão de cadáveres que ressurge da morte para se alimentar da carne dos que ainda resistem vivos.

       O signo da morte, da morte devoradora, é a maior influência a ser retrada em “The Walking Dead”. Os mortos-vivos, ou melhor, os zumbis, se tornam o principal personagem na medida em que se tornam inescapáveis para o grupo de sobreviventes a despeito de todo o desesperado esforço que é feito por parte deles.

      As constantes cenas de devastação e desolação mostram os sinais de um mundo abandonado. O filósofo francês Michel Onfray disse que os deuses nascem dos olhos mortos e extáticos de um membro da tribo. Olhando para os olhos de um morto não sabíamos dizer como aquilo que ali havia, o brilho, o testemunho da vida, podia desaparecer em uma esfera vazia, então nos consolamos ao pensar que o princípio da vida, a alma, era abrigada em outro lugar, em um lugar melhor. Mas, em “The Walking Dead”, os mortos se levantam, o princípio da vida presente nos olhos de uma pessoa não desaparece, mas é transformado em seu oposto: fome, destruição, a morte que anda e mata. Talvez seja por isso que um dos aspectos mais significantes de um zumbi- isto é muito característico na série- são os seus olhos. Olhos desfigurados, agora iluminados por um brilho infectado.

 

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(“The Walking Dead”, imagem promocional”)

 

     “The Walking Dead” apresenta-nos os sinais não de um mundo sem deus, mas de um mundo, sumariamente, por deus castigado e abandonado a um apocalipse instaurado pela boca dos mortos. O mito do zumbi apresenta a vida e a morte em estados irreconciliáveis. A morte, exilada do âmbito da vida, ressurge como uma inflamação, como um câncer, uma ferida ou tumor purulento que destrói porque seu princípio é de destruição, que se alimenta dos corpos dos vivos porque seu ímpeto é a fome. Uma fome que nasce de um vazio desconhecido, uma fome irracional e sem propósitos, uma fome que não é de alimento, é anti-humana, é o horror como o último testemunho de um julgamento divino ou do caos.

 

IV

  

      No último capítulo exibido no dia 11, “Better Angels”, o penúltimo da segunda temporada, um grande segredo da série é revelado, e foi ele que me levou a escrever este ensaioComo também é comum nas histórias de zumbis, a série nos mostra, até este momento, que a causa da transformação é alguma contaminação desconhecida, algum vírus transmitido pela mordida, pelo arranhão de um zumbi infectado e que a pessoa, uma vez infectada, morre e ressurge pouco tempo depois como um cadáver autômato. Resta, portanto, a esperança de uma vida “pura” em sua potência, a salvo dos cadáveres infectos, uma vida limpa. Porém, no final de “Better Angels”, a série revela que não é a mordida de um zumbi que contamina a pessoa com o “vírus zumbificante”, mas que todos se encontram, mortos e sobreviventes, já infectados, que não é preciso ser morto por um zumbi para se transformar em um, mas morrer, simplesmente.

       A morte pertence a todos, o homem é um cadáver adiado. Aqui, a morte é a infecção, um parasita que se instala e devora a vida e um zumbi é, em primeiro lugar, um cadáver, horrendo porque em decomposição; o zumbi é a nossa visão da morte desnudada. A boca de um zumbi é a boca da morte, o horror de ser devorado por um cadáver é o horror do corpo que se degenera ainda em vida, é quando a morte atravessa a vida e é simultânea a vida, quando ela atravessa todo o ocultamento ao qual se encontra submetida e se faz ver.

   

V

     

        Não conseguiremos reprimir os mortos sem que eles voltem travestidos com os nossos medos. Uma vida que aponta somente para a vida e a juventude é uma vida pela metade, uma vida que não se faz conhecer.   O ser-humano se obriga a encarar os seus maiores temores. Vivemos em tempos de pouca consciência e coragem, mas isso ainda não nos impediu de criar metáforas desveladoras que, mesmo quando inconscientes, nos mostram aquilo que foi posto embaixo do tapete. Mas ainda é preciso aprender a ler os mitos que nascem dos anseios mais reprimidos de nossa sociedade, ao risco da contínua ignorância.

 

      O que se encontra de mais significativo em “The Walking Dead” não é a originalidade de sua construção, nem alguma sabedoria individual escondida em seu enredo, mas é justamente aquilo que a sociedade anseia por consumir, é o mito que ganha significância porque não é autoral, se constrói de forma difusa, até passar a representar muito mais do que estamos acostumados a ler em um produto midiático.

      Também os mitos não estão mortos.

 

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Danilo Augusto é um jovem poeta e escritor da cidade de Salvador.

Bacharel em Humanidades e graduando em Letras pela UFBA.

About the author

Danilo Augusto de Athayde Fraga