De como passei por uma experiência metafísica

Marido dedicado que ama a mulher e, sobretudo, a pele que reveste o próprio corpo, tirei o dia de ontem para montar uma estante de ferro, a qual, geniosa e leitora de Thoreau, se recusava terminantemente a ser montada, propugnando pela desobediência à engenharia civil. Dispenso entrar em detalhes sobre a luta travada contra o pérfido […]

Metafisica

Marido dedicado que ama a mulher e, sobretudo, a pele que reveste o próprio corpo, tirei o dia de ontem para montar uma estante de ferro, a qual, geniosa e leitora de Thoreau, se recusava terminantemente a ser montada, propugnando pela desobediência à engenharia civil.

Dispenso entrar em detalhes sobre a luta travada contra o pérfido móvel, posto já ser mais que conhecida minha habilidade para trabalhos manuais, digna do Stephen Hawking. Direi apenas que se Hércules executou apenas 12 trabalhos, isso se deu porque o décimo terceiro era a montagem de estantes de ferro.

Após cinco horas em trabalhos esforçado, quando finalmente, tendo passado além da Trapobana, apertei o último parafuso e recolhi a língua do chão, percebi contente que ainda me restavam cerca de vinte por cento do corpo. Já a minha alma, não encontrei em parte alguma.

Arrastei-me até a cama com o andar elegante de Hefesto e a dificuldade mesma com que um requerimento passa de setor em setor, do guichê à presidência de uma repartição pública. Uma vez no quarto, preparava-me para atirar minha insuficiência cardíaca na cama, quando vi algo tremendo debaixo do lençol. Era a minha alma.

– Min’alma, minh’alma, sai-te daí – falei, em decassílabos, como convém em diálogos com entidades imateriais.

– Socorro! Um corpo! – gritou ela, assustadiça, e cobriu-se com o lençol.

– Sou eu, minh’alma. E estou cansado. Dá pra sair?

– Nem viva.

– Quer que eu use de ignorância?

– Você é um homem sem espírito.

– Pelo menos tenho alguma substância.

– Mas não tem essência.

– Sua categoria ontológica!

– Seu aminoácido!

– É guerra?

Insultado, manquei até a biblioteca e saquei o primeiro existencialista com que topei, passando em seguida a ler em voz alta uma série de argumentos contra a efetividade do espírito e da vida após a morte. A alma tentou tapar os ouvidos, mas eles estavam comigo.

– Tudo bem, eu te dou um canto – desistiu, me cedendo espaço. – Mas, da próxima vez, vou exigir que leia Tomás de Aquino.

E foi assim que dormimos, lado a lado, eu e minh’alma, numa composição metafísica capaz de espicaçar a curiosidade de mais de um teólogo. Mormente se eu acrescentasse que minh’alma roncava, coisa que não faço por não ser polido falar mal dos ausentes.

Algo, no entanto, afirmo, tendo em vista contribuir para futuros estudos espíritas: ela não tinha dinheiro consigo. O que, creio, prova definitivamente aquilo que meus detratores não se cansam de repetir: sou um pobre de espírito.

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Marconi Leal