Matabicho Lingüístico By Bruno Maroneze / Share 0 Tweet Você já ouviu falar da língua vêneta? Ou talvez já tenha ouvido falar da língua taliàn? No matabicho de hoje, inaugurando a série "línguas do mundo", você vai aprender um pouco sobre uma língua (que é chamada de dialeto, mas é língua) falada em dois lugares do mundo: a Itália e o Brasil. Veja só: ela se parece um bocado com o português, tanto em sua gramática como no vocabulário. Como será que se diz "matabicho" em vêneto? Bom dia! Já está aí matabichando? Na semana passada eu tratei de um tema de Lingüística Histórica, a respeito dos primórdios da língua portuguesa. Nesta semana, inauguro o que pretendo que se torne uma série de textos a respeito de várias línguas faladas aí pelo mundo. Como vocês devem imaginar, existem muitas línguas faladas pelo mundo. Quando eu digo "muitas", eu quero dizer muitas mesmo: oficialmente, são perto de 7.000, mas segundo alguns sistemas de contagem, isso pode chegar a 10.000. Essa variação se refere a certas línguas que são classificadas por vezes como dialetos. Vou voltar a isso adiante ainda hoje, mas isso também seria tema para vários outros matabichos. O "Summer Institute of Linguistics", uma organização dedicada ao estudo e preservação de línguas (com objetivos muitas vezes controversos, mas isso fica para outro matabicho) mantém o catálogo Ethnologue. Em sua última versão, de 2007, o catálogo conta com 6.912 línguas vivas faladas por 5,7 bilhões de pessoas. Dessas, 497 estão praticamente mortas (talvez já estejam mortas enquanto você está lendo e matabichando). A língua da qual vou falar hoje é uma das que corre algum risco. Trata-se do vêneto, uma língua falada por pouco mais de 2 milhões de pessoas, principalmente em dois países do mundo: Itália e Brasil. Talvez você já tenha ouvido falar dela, e se você está matabichando aí em Santa Catarina ou no Rio Grande do Sul, é bem possível que você conheça alguém que a fala. E é bem provável que tenham te dito que se trata de um dialeto italiano. (E aqui eu abro um parêntese importante para falar dessa palavrinha complicada que é o "dialeto": em geral, ela é uma palavra extremamente preconceituosa para se referir a línguas que não têm estatuto de línguas oficiais de um país, mas que são tão diferentes das línguas oficiais que não é possível haver intercompreensão entre os falantes das duas línguas – o "dialeto" e a oficial. Você com certeza já ouviu sendo chamados de "dialetos" uma série de línguas como o valão, falado na Bélgica, o catalão, falado na Espanha e na França, o siciliano, o lígure, o calabrês, o napolitano etc., falados na Itália, isso sem falar nas expressões "dialeto africano" ou "dialeto aborígene". Cuidado: é preconceito, é uma tentativa de desqualificar os falantes dessa língua, como se deles fosse dito "eles não falam italiano, falam um dialeto". Notam o tom desqualificador? Isso tem implicações políticas importantes, especialmente na tentativa de silenciar uma minoria, criando nas pessoas um sentimento de inferioridade: "já que isso que eu falo não é uma língua, mas sim um dialeto, então vou tratar de aprender a falar a língua"; aí a pessoa não aprende direito, tem vergonha de falar mal a língua oficial, e tem mais vergonha ainda de falar a sua própria língua, e por aí vai. Mas acho que já me empolguei demais nessas questões políticas, deixemos para outro matabicho…) Voltando ao vêneto, trata-se de uma língua derivada do latim, como muitas línguas da Europa meridional e ocidental, e portanto, uma língua-irmã desta que estou utilizando, o português. Ela é a "continuação" do latim falado na região do Vêneto, no nordeste da Itália (pegando também um pouco dos países vizinhos Croácia e Eslovênia). No Brasil, ela foi trazida por grupos de imigrantes que se instalaram em Santa Catarina e no Rio Grande do Sul, onde ela é conhecida por "taliàn" (obviamente, derivado de "italiano"). Evidentemente, o taliàn é diferente do vêneto falado atualmente na Itália, tendo sido influenciado pelo português, mas a base ainda é a mesma. Você talvez possa pensar que o vêneto é uma língua parecida com o italiano. Bom, na verdade, ela é tão parecida com o italiano quanto o português o é (exceto, claro, pela influência que o italiano exerce no vêneto). Na verdade, do ponto de vista genético (quero dizer, quanto à classificação histórica da língua), o vêneto estaria mais próximo do português e do espanhol do que do italiano. Notamos isso observando algumas características: 1. Muitas palavras em português e espanhol têm as consoantes /b/, /d/ e /g/ onde o italiano tem /p/, /t/ e /k/. Nessas, o vêneto tem as mesmas consoantes do português: português vêneto italiano amigo amigo amico entrada entrada intrata lobo lóvo lupo (o /v/ de "lóvo" é muito mais próximo do /b/ do que do /p/) 2. Algumas palavras vênetas são muito semelhantes a palavras portuguesas ou espanholas e diferem das palavras italianas: vêneto "calle" / espanhol "calle" / italiano "via"; português "vaca" / vêneto "vaca" / italiano "mucca". Claro que há palavras parecidas também com o italiano; muitas dessas foram incorporadas pelo vêneto como empréstimos, outras são derivadas de palavras latinas. 3. O vêneto tem um som bem parecido com aquele som do espanhol da Espanha, pronunciado com a língua nos dentes (aquele mesmo que em inglês é escrito com "th", como em "think"). "Jantar", em espanhol, é "cena" (em que a letra "c" representa esse som); em vêneto, se pronuncia igualzinho, mas se escreve "zhena". Uma característica importante da fonética do vêneto é um tipo de som de /l/ meio difícil de nós pronunciarmos. É como se fosse uma mistura de /l/ com /u/. Em alguns lugares onde se fala o vêneto, as pessoas não pronunciam esse som. Na escrita, ele muitas vezes é representado por "£" (o sinal de "libra"). Por exemplo, "pele" é "pè£e", "bola" é "ba£ón". Uma das mais interessantes características da gramática do vêneto é a chamada construção de sujeito redundante, muito semelhante a certas construções do francês. Por exemplo: Marco el gà magnà un fià de pan – Marco comeu um pedaço de pão. Note que, em vêneto, se diz "Marco" e depois se repete dizendo "el" (que seria "ele"). Seria como se disséssemos: O Marcos, ele comeu um pedaço de pão. Em português do Brasil, isso é bem comum, mas "O Marcos, ele", nessa frase, é entendido como uma espécie de reforço. Em vêneto, não: não se pode dizer "Marcos comeu", mas sim "Marcos, ele comeu". Se vamos dizer "Você comeu um pedaço de pão", também temos que repetir o sujeito: Ti ti gà magnà un fià de pan. É como se disséssemos "Você, você comeu um pedaço de pão". Mas repito, em vêneto isso é obrigatório e nenhum falante acha estranho. Isso se parece muito com certas construções francesas, como: Toi, tu as mangé un morceau de pain. Em que ocorre a mesma repetição ("Toi, tu"). É interessante que, no Brasil, cada vez mais usamos frases como "O Marcos, ele comeu", ou seja, repetindo o sujeito. Isso leva a uma hipótese interessante: será que o português do Brasil, num futuro distante, vai se tornar uma língua de sujeito redundante, como o vêneto? Num de meus primeiros trabalhos acadêmicos de Lingüística, eu sugeri que sim, e já vi também outras pessoas imaginando o mesmo. Mas aí já é futurologia… Este foi um breve apanhado de características gerais da língua vêneta. Se você quiser ler alguns textos em vêneto, este site tem materiais interessantes. Se algum de vocês souber de mais alguma coisa interessante sobre a língua, ou tiver alguma curiosidade para perguntar, manifeste-se! A propósito: "matabicho" em vêneto se diz "co£asión" (com aquele som de /l/ que eu comentei lá em cima).