Música Mais By Marlon Marques Da Silva / Share 0 Tweet O Daniel Piza nunca foi um crítico de música. Não sei nem se ele tinha a pretensão de ser, mas o fato é que muitos se referiam a ele com tal alcunha. Porém a música era tema constante de suas colunas – ora tratada individualmente, ora misturada com outros tópicos culturais. Eu gostava muito dos textos dele – isso não é consideração post mortem não, gostava mesmo. Sempre o lia aos domingos no caderno de cultura do Estadão. Era um jornalista versátil – futebol, política, cultura, mas mesmo com know-how, cometia alguns deslizes. Sua biografia de Machado de Assis sofreu pesadas críticas, mesmo alguns postulados sobre música eram contestáveis. Piza tinha um vasto gosto musical – passava pelos clássicos eruditos, pelos clássicos brasileiros e pelo jazz, até de rock ele falava um pouco. Porém gostar não significa entender. Não posso dizer que ele não entenda de música, porém não é um conhecimento crítico – é mais pessoal. Não que o conhecimento pessoal não seja válido, e não que o conhecimento crítico seja infalível – mas há uma diferença. Diferença? Sim, pois a verdadeira crítica dá elementos de compreensão, não aponta “bom” e “ruim”. Por isso chamamos muitos escritores/jornalistas de música de críticos mas não o são. O Daniel Piza foi um bom escritor, e como colunista foi um bom opinioso – mas não um crítico. Não por causa da morte trágica, mas continuo recomendando a sua leitura. A grande contribuição de Piza foi justamente a de recomendar escancaradamente o que ele entendia como bons sons – afinal, todo texto acaba sendo um pouco (ou muito) opinioso. Daniel Piza em um longo e até bom artigo chamado “As canções que mudaram minha vida”(O Estado de São Paulo – 17.04.2010), disse que o que faz uma grande canção: “não é apenas a melodia agradável ou com batida empolgante, nem apenas a letra eficiente ou com versos sacados, não é nem mesmo a conjunção de uma com a outra, é a conjunção de tudo isso com o momento em que é feita, de tal modo que capta ou revela um potencial da sensibilidade, como uma Polaroid de um período que pode sobreviver a ele”. Quando eu li isso, confesso que fiquei pensativo, e continuei até resolver escrever a respeito. Então quer dizer que o momento é decisivo para tornar a uma música grande ou não. Vejamos. Em 1999 – ano de crise no Brasil, o grupo de Axé “As Meninas”, lançou um hit no mercado que sacudiu o país, “Xibom Bombom”. A letra com fundo social e ritmo alegre conjuminava com o momento de crise, “onde o rico cada vez fica mais rico, e o pobre cada vez fica mais pobre, e o motivo todo mundo já conhece, é que o de cima sobe e o de baixo desce”. A letra até têm algum sentido, embora óbvia e feita apenas com rimas básicas, e se levar no sentido da colocação de Piza, ela reflete o momento com um raio-X. Mas será que isso faz de “Xibom Bombom” uma grande canção? Aí você a coloca nos efervescentes anos 60, agitação política, repressão, engajamento, porém com música e arte refinadas, será que a música do grupo As Meninas seria uma grande canção naquela época? Analisando a colocação de Piza, uma canção se faz grande se retratar um momento e não apenas por suas qualidades digamos, essenciais, intrínsecas. Então “Xibom Bombom” é uma grande canção hoje, foi em 1999 e seria em 68? Invertendo a alavanca, traremos do passado duas canções representativas de um momento, “Pra Não Dizer Que Não Falei Das Flores” de Geraldo Vandré e “Alegria, Alegria” de Caetano Veloso. Segundo Daniel Piza uma grande canção – que certamente essas o são, é capaz de sobreviver ao tempo, a seu período, isso é verdade nesse caso. Agora vos pergunto, e se essas canções tivessem sido compostas hoje, em 2010, elas não seriam grandes da mesma forma? Um homem chama um outro para ver uns rabiscos numa parede. Ele pergunta, isso é arte para você? O outro responde de primeira, não! E se eu disser que é um Jackson Pollock faz alguma diferença? Se a canção é boa, ela o é hoje ou em 1901, pois o que importa é sua qualidade intrínseca, o momento é só um detalhe. O rabisco só é arte apenas porque leva a assinatura de Pollock, então se primeiro dizer que é Pollock e depois desmentir, você irá achar primeiro que é arte e depois que não? Dessa forma, tiramos de Chico Buarque toda sua genialidade como compositor, pois analisando assim, “Construção”, “Passaredo” e “Vai Passar” não seriam grandes músicas caso fossem compostas exatamente iguais hoje, sem a ligação do momento. É claro que isso é uma tolice. Tanto é, que o próprio Chico Buarque em 1980 – com uma ditadura já quase derrotada, para se apropriar do título do livro de Élio Gaspari, lança o disco “Vida”, todo cheio de grandes canções e com pouco ou quase nenhuma incursão política. E não é porque elas não falam sobre o momento que não são grandes – só como detalhe, “Bastidores” tão conhecida do repertório de Cauby Peixoto é desse disco. E essa não é uma grande canção? O momento é importante também, só não pode ser uma condicionante. Certas canções resistem ao tempo justamente pelo seu elemento mais perene, a qualidade. Pois se o momento é que conta mais, saiba que o momento passa, a qualidade não. Embora o debate da época fosse outro, é justo acusar Pixinguinha de alienado por ter composto em 1916 o tema “Carinhoso”, instrumental apenas, sem letra, e mais, sem engajamento com a questão negra ainda muito presente na sociedade da época? Acredito que para os gênios da raça não existe tempo, período, momento, existe sim seu gênio, bastando-se em si. Será que Pelé não seria hoje o maior de todos, ou Machado de Assis não seria capaz de compreender com a mesma perspicácia esse sociedade pós-moderna como entendeu a do século XIX? Bom, fica a questão no ar, o gênio é criação do momento ou é atemporal? Sei lá, o que dizer então de Espinosa e Kafka e suas épocas.