“Nós somos o que nos falta” (*)


“Não, não chore; nova esperança, novos sonhos, novos rostos. E a alegria não vivida dos anos que estão por vir vai mostrar que o coração pode enganar o sofrimento. E que os olhos podem as próprias lágrimas iludir”. (ADDISON, C. Cruzando o caminho do sol. Novo Conceito: Ribeirão Preto, 2012, p.49)

Epíteto, filósofo grego, pondera que não devemos pedir que  os acontecimentos ocorram como queremos, mas devemos absorvê-los como ocorrem, pois, assim, a vida poderá ser feliz.  Nesse entendimento, a felicidade implica em aceitar os tropeços, recebendo as coisas como elas são, aproveitando a premissa de que é necessário deslizar pela vida,  principalmente, quando ela  ignora os nossos desejos.  Quando a vida nos falta.

Perante essa concepção filosófica, seria muito mais racional alterar os desejos do que mudar a ordem das coisas, não se debelando contra as situações que pouco se importam com o que passa ao nosso redor. Com bem-aventuranças, as circunstâncias são baluarte apenas de si mesmas, entram pela vida com uma chave única da porta, configurando na saída a meditação do nada, como se cada homem fosse só um pária.

Nem sempre há justiça nas relações, independente da apelação às instâncias máximas. Sentimentos simples podem ganhar uma condição de destaque se ameaçados de extinção, alcançando um valor incomparável, mas nem sempre o desprezo, gera atenção da Corte Suprema. Às vezes, os sentimentos são preciosos por não existirem ou mesmo durarem nos nossos desejos.

Por um lado, o medo do abandono e da solidão não impede de não sermos amados por nossos pais, irmãos, amantes e amigos. E por mais que se lute, agonizando, tentando resgatar uma intimidade que nunca se teve, o outro  continua fingindo,  por estar certo, não por desmerecimento, mas porque não há nada a fazer.

Por outro, erra quem entende que a negação do que falta, torna invisível a dor, a perda e, talvez, a culpa. Não há válvula de escape quando o coração tenta enganar o tempo, pois ele nos encontra onde quer que seja. Esse é o mal de percebemos à vida externa melhor  do que a nossa, rebatendo o drama pessoal, esperando o olhar piedoso para não aprender a passear sozinho.

Epíteto, mesmo escravo de Epafrodito, acreditava que felicidade e realização pessoal eram desdobramentos de atitudes corretas, sendo que desejo e a felicidade não podiam viver juntos.  Não lamentava as injustiças, mas celebrava os triunfos, sem se preocupar com o apego ao dia seguinte, permitindo, assim, tê-lo como descaso.

Em sua concepção, da mesma forma que o desejo vem, ele vai embora, pois as pessoas mudam. E quando o dia acontece, não temos desculpas para não assumirmos os nossos erros ou vivermos a escuridão de nossos problemas.  Não saber lidar com a nossa própria dor, só, deposita a esperança fora de nós.

E a relativa liberdade nos permite a andar devagar, quase parando, esperando que o outro resolva o que é só nosso. Somos “Alzheimer Familiar”, pois no mundo encantado de Bob, queremos as verdades simples de se suportar, somos defensores do esquecimento benigno da estátua que chora quando o sol se põe.

Eternos nostálgicos da frase que o joio se separa do trigo, minimizando o fato de que na vida real, pode existir só o joio. Mas o dia do acerto de conta da produção sempre chega sob a dor ou a raiva, e o tempo não se permite a não passar ou atrasar o pagamento, sem dignidade, mesmo que em breve, esteja esquecido no passado. E, assim, a amargura do dia longo ser transitório, é tão verdadeira como o fato de não sermos amados tanto como gostaríamos.

Talvez essa ânsia pelo amor nos remeta a nossa vulnerabilidade como cantou Renato Russo: […] Os sonhos vêm e os sonhos vão. E o resto é imperfeito […]”

Assim, vivemos apavorados com o que  não nos pertence e demonstramos a fraqueza que só nos conduz a novos desencantos, ignorando o rochedo quando a colisão estar à frente. Quando ela já não nós pertence. Quando não há freio de mão.

Em certa ocasião, escutei de uma conhecida que a frase que contempla que é melhor ter amado e perder do que nunca ter amado, nunca poderia ter sido escrita por aqueles que perderam a quem amaram. Mas, independente, dos que só amam e dos que apenas são amados, na vida real é preciso saber perder vantagens e valores para ganhar outras opções de realidade. Não achar que o correto é pular antes do trem ganhar velocidade.

Já perdi algumas pessoas apenas porque acreditava no controle sobre os desejos alheios. Rebelava-me porque os ciclos de humor não eram oriundos da minha intuição, rondava pela toca, exigindo alegria quando recebia frieza, esperando mais atenção quando recebia efusão. Achava que tudo girava ao meu redor, inclusive o poder sobre os altos e baixos externos. Hoje não tenho entusiasmo com a atenção ou entro em pânico na solidão. Com o tempo ou com os erros, resolvi sair sem sentimentos das relações.

Aprendi a não ver a ação do outro como fruto de maldade, mas de uma opção que só não é a minha. E por mais que a fotografia revele um desejo esperado de perfeição, sigo a instrução de criar uma blindagem contra o sofrimento, mesmo paradoxalmente sofrendo.

Isso talvez nos enlouqueça, mas só, assim, enxergaremos nas ações que não são nossas o início da posição de humano superior em quem verdadeiramente nós somos. Talvez, sejamos tudo e nada, mas por tão pouco esquecemos que em si mesmo nada somos, que tudo se perde na imensidão dos milhares, do vácuo da nossa ignorância humana e do fardo da vantagem de não sermos bobos e por isso vencíveis.

No final, poderemos ser escravos ou reis, mas, com certeza, o fim dos nossos desejos que se voltam contra o outro que compete também pela razão de ser e existir. Talvez Deus tenha se esquecido de nos avisar que não seríamos únicos.  E mesmo esgotados emocionalmente, totalmente exaustos, temos que encontrar uma posição confortável, aceitar  que não há juízo de valor na escolha do outro, mas corroborar com  Lord Byrosn: “ o coração será partido, mas continuará vivendo”.

E sem rejeitar o confinamento dos nossos desejos, ser um bobo, ficar tranquilo, não desconfiar ou desejar, mas ganhar liberdade e sabedoria para continuar vivendo, sem paranoias como se as dificuldades que a vida nos apresenta, tivessem sempre um caráter pedagógico. Não se enganando da pontualidade das circunstâncias e da limitada percepção de nossa compreensão.

E como Clarisse Lispector diz: “É quase impossível evitar o excesso de amor que um bobo provoca. É que só o bobo é capaz de excesso de amor E só o amor faz o bobo.”

(*): O título da crônica  é de uma frase de Eduardo Portella para apresentação da crônica: “Perfil de ser eleito” de Clarisse Lispector

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Luciana Santa Rita